Agora somos Cavalos de Ferro

Não há uma única "ideia" em "Beatles". Não há uma única inquirição existencial acerca do "ser humano". Não há longos monólogos metafísicos, elucubrações acerca da "verdade" ou do "real" - tudo questões fundamentais quando se lida com um conceito como o de "identidade", algo de fundamental no século XXI - e que atravessa, como uma seta invisível e cega todo este romance. E, no entanto, todos os vectores acima mencionados estão presentes ao longo das quase 600 páginas de "Beatles", diluídos num brilhante (apesar de extremamente discreto) trabalho de linguagem, afundados na discreta estrutura interna. "Beatles" é, mais que um romance sobre a adolescência (embora tenha como personagens quatro adolescentes na segunda metade dos anos 60, na Noruega), um romance sobre o crescimento e a identidade. É, por isso, um romance que vive do constante instaurar e ruir de absolutismos, que vive da distância entre as diferentes reacções que a mesma personagem tem face a eventos semelhantes. Narrado por Kim (que, num truque extremamente inteligente por parte de Lars Saabye Christensen, é constantemente apelidado de "mentiroso"), "Beatles" não se fica pelo "quadro histórico"; antes os acontecimentos (o Vietname, o Maio de 68) funcionam com um pano de fundo, um pano de fundo que permite perceber o funcionamento interno das personagens. Antes de mais, porque eles vivem de uma "realidade emprestada" (têm acesso aos acontecimentos da época pela televisão e jornais, e era a primeira vez na história da humanidade que o mundo se observava mutuamente numa espécie de estratégia de vigilância); depois porque, por exemplo, durante uma manifestação antiguerra do Vietname a preocupação dos quatro é a possível separação dos Beatles. O livro demora-se nos pormenores de adolescência: bombinhas, o roubo de uma revista porno, a primeira cerveja. A descoberta das raparigas. A lógica de grupo. A verdade absoluta e a descoberta da mentira: aos amigos, aos pais, dos pais aos filhos, dos filhos entre si. O nascimento da consciência social e dos escalões sociais. A abundância de pormenores faz-nos "crer" na gravidade das angústias de cada um daqueles miúdos - e a universalidade das "vinhetas" (usadas de forma quase cinematográfica e com um agudo sentido de humor "nonsense") permite ultrapassar o fenómeno geracional. A segunda parte do livro é mais crua e negra. Corresponde ao pós-Maio de 68, à explosão da heroína, ao fim dos Beatles - o fim do preto e do branco. A linguagem das personagens é também diferente. Há um sentimento de desnorte naquelas personagens, ampliado pelo ruir de velhas dicotomias e normas sociais. Em última instância, é apenas uma história extraordinariamente bem contada que leva às últimas consequências as palavras de John Lennon: "Tomorrow never knows" - o que, tendo em conta a idade das personagens, torna "Beatles" num romance sensível, de um humor refinado e comovente, capaz, aqui e ali, de ser cruel. Lê-se de uma penada e sabe "a um Verão inteiro e a meia infância". [JOÃO BONIFÁCIO in Público]

"Beatles", que consolidou o sucesso de Christensen, tendo vendido 200.000 cópias, apenas na Noruega, é uma história da geração de 60, que nos mostra quatro rapazes que vivem e festejam cada novo single dos Beatles com todo o envolvimento, tendo como pano de fundo o cenário político da época (o comunismo na Checoslováquia, a guerra do Vietname...). Uma saga quase familiar sobre a descoberta do mundo, do amor, e da vida como ela é na época do sexo, droga e rock'n'roll, cheia de humor, e a escrita transparente do grande escritor norueguês.

"Beatles" de Lars Saabye Christensen
Cavalo de Ferro ● ISBN: 972-8791-97-6 ● 560 Páginas

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