Bonito em rosa

Sade, O Terror na Alcova do francês Serge Bramly, conta, ficcionando, uma determinada época já decadente, mas provavelmente uma das mais interessantes, da vida do eterno Marquês de Sade.
A acção passa-se toda ela em plena Revolução Francesa, no mais aceso período do terror. Sade, então, estava preso, embora sob a atenta protecção de uma amante influente, a quem chamava Sensível. E só por isso escapou à guilhotina. Dando-se mesmo ao luxo de escrever um dos seus mais importantes livros: A Filosofia na Alcova. Protegido, volto a sublinhar, por Sensível, que se curvava, submissa, ao seu despótico jogo, cumprindo as suas fantasias. Sensível, que ia ao ponto de levar até ele não somente papel e penas, mas igualmente mulheres, para que fossem as suas próximas vítimas. Sensível, que tentava protegê-lo de si próprio. Tarefa verdadeiramente impossível.
Serge Bramly, num exemplar fresco, consegue mostrar-nos Sade tal como ele então deveria ter sido: envelhecido já, mas nunca inofensivo. Antes pelo contrário: libertino e perverso, com uma ferocidade implacável, tentando vencer o tempo que, impiedoso, nele vai deixando as suas marcas.
"Em 1794, os cabelos tinham virado louro acinzentado, assim como as espessas sobrancelhas que sombreavam os olhos de gato. A testa estava desguarnecida: o queixo e as faces tinham inchado, tornaram-se enormes, não se lhe via o pescoço." Mas, Bramly logo se apressa a acrescentar, como que retratando-se: "Apesar da corpulência, o porte continuava, entretanto, erecto, e a aparência bastante nobre." E esta ambiguidade contrita, acompanha do princípio ao fim todo o romance. Pois o seu autor ora mitifica o Marquês, porque o admira, ora o mostra vil e desprezível, provavelmente porque, também, o horroriza, na sua assumida perversidade, que ia, se necessário até ao crime.
Pois para Sade não era, afinal, o desmesurado prazer sexual que contava de toda a sua vida, pondo em prática, precisamente, aquilo a que chamou, a filosofia na alcova. Na qual as mulheres, todas elas, não importavam senão como objectos sexuais. Aos homens, dividia-os ele pela inteligência, poder e classe social. Embora para Sade nem todas da sua classe, contassem.
Dizia-se republicano, defensor da liberdade. Exigindo no entanto ser reconhecido como senhor absoluto dentro do círculo em que se movia, como lembra por carta a sua mulher: "Fui feito para ser servido, e quero sê-lo."
Sade era um ser cruel, genial e terrível, que fez de si próprio este impressionante auto-retrato: "Imperioso, colérico, arrebatado, extremista em tudo, dum desregramento de imaginação sobre os costumes como não há igual, é o que eu sou, em duas palavras: e mais, matem-me ou façam-me de morto, porque não mudarei." Deram-no não por morto, mas por louco, e internaram-no no pior hospício, onde o maltrataram com a brutalidade com que no século XIX tratavam aqueles que eram considerados alienados. Mas isto acontecerá depois do período que Bramly trata neste seu livro, que para além de uma biografia romanceada de Sade é, também, um excelente levantamento histórico.
O que, no entanto, mais me atrai em Sade, o Terror na Alcova é o elogio da perversão, feito através do Marquês de Sade, dois séculos atrás, por um jovem autor dos nossos dias, nos quais a perversão é tão quotidiana e medíocre, que logo se banaliza e se nega a si mesma.
Creio que aquilo que Bramly procura, é recuperar para a versão sexual, a grandiosidade de um Marquês de Sade, no seu permanente desafio à hipocrisia e aos costumes. No seu sentido mais profundo: "Que nada é mais belo, mais grandioso do que o sexo e que, fora do sexo, não há salvação." Ou seja, há que fazer novamente a abordagem do pecado, para que a inocência volte a fazer sentido.
[MARIA TERESA HORTA / DN]

A minha maneira de pensar - diz você - não pode ser aprovada. Ora bem! O que é que isso me importa! Louco é o que adopta uma maneira de pensar para os outros! A minha maneira de pensar é o fruto das minhas reflexões; tem a ver com a minha existência, com o meu modo de ser. Não posso mudá-la; isso é uma coisa que não posso fazer. Esta maneira de pensar que me censura é a única consolação da prisão, compõe todos os meus prazeres neste mundo e quero-lhe mais do que a vida. Não é a minha maneira de pensar que faz a minha infelicidade, mas a dos outros.
Sade (Carta a Madame de Sade)
Sade - O Terror na Alcova, de Serge Bramly • EDIÇÕES SÉCULO XXI

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