Enquanto o mundo se expande

No Leste, nos Balcãs, fumar e conviver à roda de uma mesa, entre amigos, ainda constitui um imprescindível acto social. Mesmo nos tempos mais duros do cerco a Sarajevo, no decurso da guerra civil na Bósnia-Herzegovina, houve uma fábrica de tabaco e uma padaria que nunca encerraram.
A primeira era a única fábrica com licença para produzir cigarros Marlboro em toda a extinta Jugoslávia. Dizia-se mesmo que o Marlboro Sarajevo era um cigarro que os especialistas da Philip Morris adaptaram ao gosto dos fumadores locais, utilizando o tabaco colhido na região.
Esta cooperação particular com os Estados Unidos foi interrompida durante os 43 meses de guerra, entre 1992 e 1995. Mas apesar do cerco de Sarajevo, a velha fábrica inaugurada há mais de 120 anos nunca deixou de produzir, mantendo cerca de 30 por cento do nível de produção anterior ao conflito. E durante os tempos mais difíceis, de grande escassez de bens de primeira necessidade, a população local começou a utilizar os cigarros como moeda de troca.
Em finais de 1999, a velha fábrica investiu em novos equipamentos e iniciou um processo de privatização, um dos poucos com algum sucesso no dividido país.
"Marlboro Sarajevo" foi o título escolhido para os primeiros contos de Miljenko Jergovic, agora publicados em português. Natural de Sarajevo (1966) e de origem "croata bósnia", testemunha do início do conflito que destruiu o seu país, decidiu fixar-se em Zagreb, onde ainda vive, em 1993 ou inícios de 1994 (as informações divergem), com 27 anos. Jornalista, colunista político, poeta, escreveu reportagens sobre a sua cidade cercada para o semanário croata "Nedeljna Dalmacija". Para além desta sua obra de estreia publicou ainda uma colectânea de contos ("Karivani") e dois romances ("Buick Riviera" e "Mamma Leone"), transcritos em diversas línguas, muito bem acolhidos pela crítica e premiados.
A sua escrita é considerada uma forma de arte que capta sentimentos, paixões e tristezas. Curtas e incríveis histórias de paradoxos, maus presságios, efémeros sinais de esperança. E que já foi mesmo incluída entre a "grande literatura universal" das últimas décadas. Comparada mesmo, mas de forma algo abusiva, ao grande escritor jugoslavo e Nobel, Ivo Andric.
Esta publicação, com a chancela da Cavalo de Ferro, constitui um mosaico de histórias de duas/três páginas. Jergovic percebe perfeitamente o que está a suceder na sua cidade, aos seus concidadãos, e por saber que não podia travar a história optou por descrevê-la, na sua própria voz. Um livro de paradoxos, onde a natureza humana se revela em toda a sua complexa e contraditória dimensão, onde a "insustentável fragilidade" das pessoas, a sua perturbante "dimensão primária", a sua capacidade de adaptação, resistência e solidariedade, se cruzam num ambiente caótico.
Um livro para melhor compreender a região, que testemunhou com espírito conturbado a elevação de um novo país.

Marlboro Sarajevo, de Milijenko Jergovic • CAVALO DE FERRO

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