Hoje, na Bloom, foi o dia de Luiz Pacheco. Isto porque os seus livros, levados por diferentes mãos, desapareceram quase todos. O que é bom. Mas, por outro lado, já sentimos a falta do conforto maldito das palavras que fazem da escrita de Luiz Pacheco um caso único em Portugal. Para que se saiba, Luiz Pacheco ainda está vivo. Aos 82 anos abandonou o lar onde vivia e está agora com um dos seus - muitos! - filhos, o Paulo Pacheco. E por ser o seu dia, deixamos aqui uma das suas últimas entrevistas concedidas ao jornal Correio da Manhã.
[PRIMEIRA PARTE]
Os óculos pesam nos olhos que cegaram. À cabeceira, o jornal ‘Avante’ e um livro de José Gomes Ferreira não são bibelôs, mas companhias. Luiz Pacheco, criatura de inteligência rigorosa, de lucidez sobrenatural, um livre pensador que disse e diz coisas que não são fáceis de serem ditas, está preso a um cadeirão, tem o robe vestido, o aquecedor ligado e uma manta para o frio não lhe magoar o esqueleto. Nasceu em Lisboa, na Rua da Estefânea, a 7 de Maio de 1925, pai de oito filhos – frutos de muitos amores, na vida escolhida, que foi dura por prazer, só fez o que bem entendeu.
O Estado Novo prendeu-o por politiquices e por ter amado menores. Frequentou o curso de Filologia Românica na Faculdade de Letras e a meio mandou o curso dar uma curva ao bilhar russo. Entretanto, a Inspecção de Espectáculos admitiu-o como agente fiscal, mas sedentarismo não combinava com o seu feitio. Preferiu a situação que considera invejável: desempregado. Depois, funda a editora Contraponto onde a corrente surrealista viu muitos dos seus autores publicados. Crítico literário e cultural, tradutor, colaborou em diversos jornais e revistas, ‘O Globo’, ‘Afinidades’, ‘Seara Nova’, ‘Diário Popular’. A sua escrita caracterizada de irreverência e de poesia esbofeteou a torpeza intelectual e desafiou o lápis azul da censura salazarista. Luiz Pacheco, que, em tempos, se fez sócio do Benfica para ir aos bailes e do Sporting para ir à natação, já não dança e não aprendeu a nadar. Apesar de ter andado perto do fundo, acaba por vir sempre à tona e ao seu ritmo.
Tinha dito que não saía do lar do Príncipe Real. Afinal, enganou-se. Vive com o seu filho.
Um gajo também se engana! A vida nos lares é uma espécie de regimento. Horários. E mais horários. E eu estive em três. O pior era a convivência com os moribundos e as moribundas. Deprimente. Os tipos iam buscar os velhos às camas e espetavam com eles num buraco a que chamavam sala do convívio. Qual convívio? Convívio nenhum! Velhotes com os olhos fechados e outros que estavam nas últimas. Ah... e havia um animador que se punha a contar de um até ao número dez. Quando a gente pensava que o tipo ia fechar a goela, desatava a dizer a numeração em forma decrescente. Ele fazia coisas incríveis! Mandava pôr a mão para cima, para trás, para os lados. Eu sei lá. O último lar era muito mau. Tinha lá uma mulata que era cleptomaníaca. Roubou uma velha muito afanada e eu também fui roubado.
O Luiz é que não está nada afanado...
Eu não estou afanado? A miúda deve estar a brincar! Eu não estou nada bem. Tenho muitas doenças, talvez umas vinte e três. Agora tenho uma merda chamada incontinência. Para um gajo é muito mau andar de fraldas. Mas a vista é a pior das mazelas.
Se fosse menos teimoso já tinha sido operado.
Não conte com isso! Tenho medo. E não é da anestesia. Medo das consequências. A merda da operação pode provocar um acidente cardiovascular e já viu o que era? Dizem que é coisa muito simples, mas isso são conversas. Nessa eu não caio!
Voltar a ler não é um estímulo?
Oh miúda, eu já li muito. Nem queira saber o que eu já li. Agora é a minha filha que me lê os artigos de jornais e algum livro que eu queira ler. Ocupo o raio do tempo a ver a RTP Memória. Estou a ver coisas que nunca tinha visto. Como por exemplo, o Júlio Isidro, o Zip-Zip. Gosto de ver velhadas. Entretenho-me com o humor fabuloso do Vasco Santana, do António Silva. O Solnado é uma merda. Uma invenção. Um disparate. O Herman José é diferente. Basta ser de origem alemã para saber o que está a fazer .
O melhor aluno do Liceu Camões gosta de velhadas...
Não me faça rir. Mas fui o melhor daquela malta toda. Entrei em 1936 e fiquei lá oito anos. Sentava-me sempre na carteira da frente, porque os meus olhos já eram dois sacanas. O avô desse tipo chamado Eduardo Prado Coelho foi meu professor. Nós cagávamo-nos no gajo.
Quem eram os seus colegas?
Lembro-me do José Manuel Serra, que foi director do Teatro Nacional de São Carlos, Lobo Saias, que chegou a ministro, e outros.
Os liceus não eram mistos, portanto, miúdas não eram peras doces...
Imagine que nem podíamos chegar ao pé de uma escola feminina. Quando chegou a altura da universidade, o convívio não foi fácil. Não estávamos habituados. Pedir um lápis emprestado era cá uma trabalheira. Só para não haver contacto, deixávamos cair o raio do lápis ao chão.
Entretanto, os contactos melhoram... esteve preso no Limoeiro devido a aventuras amorosas.
Prenderam-me por razões políticas e por ter desflorado umas garotas que eram menores. Mas atenção: eu também era menor! Uma ocasião foram duas irmãs ao mesmo tempo. Foi cá uma chatice... Antigamente, rapazes e raparigas faziam o que hoje fazem, mas com a diferença: não tinham o à-vontade que existe hoje. A pílula foi a estrondosa revolução. Ouvir dizer que, até, os homens já podem tomar essa m. Eu nunca tomei. E sou contra o aborto. Hoje em dia as garotas têm muitas facilidades...!
Um rol de contraceptivos e a pílula do dia seguinte
O que é isso? O comprimido do dia a seguir à cegada?
Sim. É contra o aborto e a favor da despenalização?
É claro! Prender moças é um autêntico disparate. Mas há malta que diz que aborta porque rejeita ter filhos indesejados. Ouça cá uma coisa: uma rapariga que se deita com um rapaz sabe do risco. E há outra malta que diz que não consegue criar filhos. Mentira. É só conversa. Eu sem cheta, desempregado, tenho oito filhos. Uma vez, fui deixar um filho à Casa Pia. Se os ‘gansos’ eram bem tratados? Coitados. Aquilo era uma miséria.
Voltando à prisão. Como era no Limoeiro?
Uma prisão para os gajos que esperavam julgamento. Havia batota que não era a feijões, mas a dinheiro. Estava lá um enfermeiro tarado que vendia penicilina misturada com água. O refeitório era umas mesas corridas e havia um tipo que distribuía a comida. Os acordos davam direito ao prato ficar mais cheio. Naquela merda havia estratos sociais. A Sala dos Menores, a Sala dos Primários, para os estreantes, a Sala Comum, que era para a maralha, e a Sala dos Bacanos, onde estavam aqueles que tinham conhecimentos fora da prisão. Como eu. Da segunda vez que estive dentro, o Artur Ramos telefonou ao pai, que era director-geral da Penitenciária e pôs-me cá fora. [...]
[A 'MIÚDA' QUE ENTREVISTOU LUIZ PACHECO CHAMA-SE MIRIAM ASSOR e creio que confundiu afanar com anafar, mas isso é lá com ela...]
E muito obrigado a quem passou hoje pela Bloom, são eles que fazem com que nós continuemos a caminhar. A subir ao lugar onde está a luz e se pode respirar.
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