Nesta mão que te dizia adeus

Em Lisboa, sua terra natal. Sombria e solitária. Ernesto Sampaio, poeta, tradutor, pensador, bibliotecário, jornalista, morreu esta semana, junto dos seus livros e das suas memórias. Em sua casa. A casa que, para este poeta, passou a ser "lá longe onde nascem os lobos".
A morte arrancou-o subitamente, assim como o fizera, no ano anterior, à actriz Fernanda Alves, sua mulher. O seu último livro, "Fernanda" (Fenda, 2000) , a que ele chamava "o seu coração empalhado", é o testemunho dessa morte e de um amor decisivo que foi, do lado dos grandes afectos, o sustentáculo de uma vida: "Estar vivo é acordar todas as manhãs no inferno. A recordação de um só dia contigo torna inúteis o labor e o prazer de todos os dias que me restam viver". A morte dela não pode deixar de estar associada a este final de vida de Ernesto.
Ernesto Sampaio foi um dos grandes teóricos do surrealismo, embora a sua obra seja curta e o seu temperamento tenha sido discreto. Disse ele, numa entrevista ao PÚBLICO (12-10-93): "Dá-me um certo prazer ser esquecido, assistir às coisas como se não existisse, como se não tivesse uma presença real, estar e não estar".
Este desejo de estar à parte, numa espécie de não visibilidade, tornou-o pouco conhecido dos leitores, mas um nome indispensável para o conhecimento das margens da literatura portuguesa contemporânea, ao lado, por exemplo, de Cesariny, Herberto Helder, Ângelo de Lima ou António Maria Lisboa. O próprio Herberto antologiou-o na sua obra "Edoi Lelia Douro" (Assírio e Alvim, 1985) e escreveu sobre ele: "As reflexões sensíveis deste autor, os seus poemas - meditações ou como se lhes queira chamar - são dos textos mais agudos e corajosos que entre nós se escreveram, na modernidade, dentro da e sobre a 'experiência poética'".
O que disse Ernesto, de Fernanda, pode ser dito agora dele, pela suas próprias palavras: "É uma planta que continua a florescer depois de ter sido arrancada".

SOBRE O AUTOR
Ernesto Sampaio nasceu em Lisboa em 1935. Considera a sua terra natal horrível, infestada de provincianos, de bimbos criminosos, mas mesmo assim, pelo menos a Ocidente, nunca viu outra melhor.Infância e adolescência um tanto pasmadas: foi quase sempre último da classe até que de repente passou a ser o primeiro. Nesse mesmo ano abandonou os estudos e partiu à aventura. Voltou arrependido. Depois como toda a gente, aceitou a canga do trabalho e deixou-se esticar pela roda infatigável do hábito e da rotina: foi actor, bibliotecário, jornalista [&ETC, DN, DL, Público], professor do ensino secundário, entre outras desvairadas profissões [foi tradutor de Artaud, Breton, Péret, Arrabal, Ionesco, Thomas Bernhard, Arthur Adamov, Walter Benjamin, Oscar Wilde, Eliot, etc] mas agora deixou-se disso. "Ninguém sabe de que vive, nem sequer ele próprio, embora viva bem …
[in Feriados Nacionais, Fenda, 1999]

Fernanda, de Ernesto Sampaio • FENDA • À VENDA NA BLOOM

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