A Obra verdadeira

O Idiota (em russo org: Идиот) é um livro escrito em Florença entre 1867 e 1868, durante quatro meses, por Fiódor Dostoiévski.
Após uma longa ausência de São Petersburgo, o príncipe Míchkin retorna ao seu país.
Oficialmente sofre de um estado de depressão nervosa, o que serve para evitar equívocos quando à real condição do príncipe: este padece de uma forma totalmente idiota de ser, que se torna visível na mais pequena demonstração da vontade que carece ter. Consequentemente à falta de decisão e vontade própria, Míchkin tem uma confiança ilimitada naqueles que o rodeiam. No decorrer da sua viagem conhece Rogójin, um exuberante e abastado jovem de quem se faz amigo. Rogójin entretém o príncipe com o desenvolver da sua ardente paixão por uma certa Nastássia Filíppovna, mulher bela e generosa, mas de reputação duvidosa. Ao chegar a casa do general Epantchin, Míchkin ouve falar nova-mente de Nastássia e apercebe-se que Gánia, o jovem secretário do general, pretende desposá-la pelo seu dote. O príncipe sente o desejo irresistível de a encontrar, o que acontece na casa de Gánia. Segundo o seu entender, Nastássia não merece casar com um homem que não a ame, que queira apenas o seu dinheiro, como é a intenção de Gánia. Entretanto um embriagado Rogójin oferece a Filíppovna uma enorme quantia de dinheiro para que ela fique com ele. Míchkin percebe o desespero em que a jovem mulher se encontra e pede-a em casamento para a salvar da perdição total, mas Nastássia acaba por se render e fugir com o rico mercador. Os dois homens, anteriormente unidos por uma cúmplice amizade, tornam-se temíveis rivais. Rogójin tenta mesmo assassinar Míchkin. Entretanto, Aglaia, a filha mais nova do general Epantchin, declara o seu amor a Míchkin. O príncipe não fica indiferente a tamanha manifestação, e chega mesmo a acreditar que se encontra apaixonado por ela. Mas Nastássia não suporta a ideia de ter uma rival no coração de Míchkin e aceita desposá-lo. Rapidamente Míchkin renuncia do seu amor por Aglaia para salvar Nastássia. No dia do casamento, a noiva foge novamente com Rogójin, que acaba por matá-la. A história iniciada com o encontro de Míchkin e Rogójin desfecha-se com um reencontro dos mesmos junto do corpo inerte de Nastássia. O príncipe, que encontra Rogójin banhado em lágrimas de arrependimento, acaba por soçobrar num estado de demência total. Ao fazer de Míchkin uma espécie de encarnação ideal da bondade e da humildade, um héroi entre as figuras de D. Quixote e Jesus Cristo, Dostoiévski demonstra o que pode suceder a um homem genuinamente bom quando posto em confronto directo com a pérfida realidade envolvente. Publicado em 1869, «O Idiota» é, dos cinco grandes romances de Dostoiévski, o mais perfeito a nível estilístico e de construção dos personagens, mas também o mais incompreendido na sua época. «O Idiota» retrata o conflito sentimental sem resposta entre o bem, o belo, o mal, o ódio, a aversão e o rancor, que, com o seu génio, Dostoiévski trata de uma forma única e intemporal.

Por um tempo amaciado, de degelo, de fins de Novembro, cerca das nove da manhã, o comboio de caminho-de-ferro Petersburgo-Varsóvia aproximava-se a todo o vapor de S. Petersburgo. Estava tão húmido e havia tanto nevoeiro quer amanhecia a custo; era difícil distinguir alguma coisa das janelas da carruagem a mais de dez passos à esquerda e à direita da linha. Entre os passageiros, alguns voltavam do estrangeiro; mas o grosso dos viajantes, gente simples e de trabalho, enchia a terceira classe e viajava em lugares não muito distantes. Como de costume, toda a gente estava cansada, de olhos pesados ao fim da noite, com frio, todos os rostos de um pálido amarelado, da mesma cor da neblina.
Numa das carruagens de terceira classe calhou ficarem frente a frente do lado da janela, desde o amanhecer, dois passageiros - ambos jovens, ambos quase sem bagagem, ambos com roupa longe de ser elegante, ambos dotados de notáveis fisionomias e ambos com vontade de, finalmente, meterem conversa um com o outro. Se soubessem um do outro o que sobretudo os tornava dignos de nota neste momento, decerto se espantariam que, de modo estranho, o acaso os tivesse sentado frente a frente numa carruagem de terceira classe do comboio Varsóvia-Petersburgo. Um era baixo, de uns vinte e sete anos, cabelo encaracolado, quase preto, olhos cinzentos pequenos mas flamejantes. Tinha o nariz largo e achatado, as maçãs-do-rosto salientes; os seus lábios finos formavam a cada instante um sorriso descarado, sarcástico, mesmo malvado; mas a fronte era alta e bem desenhada, compensando a rudeza da parte inferior do rosto. Era sobretudo notório neste rosto uma palidez mortal que dava ao jovem um aspecto extenuado apesar da sua compleição bastante sólida e, ao mesmo tempo, uma espécie de paixão próxima do sofrimento, em desarmonia com o seu sorriso atrevido e bruto e com o olhar brusco e presunçoso. Estava bem agasalhado numa peliça larga de pele de carneiro preto e não passara frio à noite, ao passo que o vizinho experimentara nas costas toda a doçura da húmida noite russa de Novembro, para a qual, pelos vistos, não estava preparado. Trazia uma capa sem mangas bastante grossa e larga, com um capuz enorme, como a usada pelos viajantes invernais algures no estrangeiro longínquo, na Suiça ou, digamos, no Norte de Itália, sem ter, evidentemente, em conta distâncias como a de Eidkunen a Petersburgo. O que era útil e satisfatório em Itália tornava-se pouco adequado na Rússia. O proprietário da capa com capuz era um jovem, também de vinte e seis ou vinte e sete anos, de estatura um pouco superior à média, muito loiro, de cabelo espesso, faces cavadas e uma barbicha muito leve, pontiaguda, quase branca. Tinha uns grandes olhos azuis e atentos. Havia naqueles olhos uma grande clama, embora pesada, e algo carregado daquela expressão estranaha que leva algumas pessoas a detectar nela epilepsia. O rosto jovem, porém, era simpático, fino, seco, mas descorado, de momento ainda azulado de frio. Das mãos pendia-lhe uma pobre trouxa de pano desbotado que, pelos vistos, continha todos os seus haveres de viagem. Calçava sapatos de sola grossa com polainas - tudo à moda estrangeira. O vizinho de cabelo preto e peliça examinou-lhe o equipamento, em parte por não ter mais nada que fazer, e perguntou com aquele risinho pouco delicado com que às vezes se exprime descuidadamente e sem cerimónias o prazer das pessoas à vista dos azares do próximo:
- Tem frio?
E encolheu os ombros.
- Muito frio - respondeu o vizinho com grande prontidão - e repare: o tempo degelou. E se estivesse gelo? Não pensava que fizesse tanto frio na nossa terra, já estava desabituado.
- Vem do estrangeiro?
- Sim, da Suiça.
- Irra, onde se foi meter!
O do cabelo preto assobiou e riu-se.
Dostoiévski é um dos escritores preferidos da Bloom, será sempre uma presença habitual enquanto existirmos. Aqui ele será sempre imortal. Será sempre de hoje.

O Idiota, de Fiódor Dostoiévski • PODIA ATÉ SER OUTRO • PUBLICADO PELA PRESENÇA

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