Não estava quietinho...

A escritora italiana Romana Petri começou a ser conhecida em Portugal com o livro “A Senhora dos Açores” (prémio do melhor romance publicado em Itália em 2002). Depois disso, a Cavalo de Ferro editou “Os Pais dos Outros”, “Uma Guerra na Úmbria – Case Venie” e “Regresso à Ilha” (o seu outro romance cuja acção decorre no arquipélago dos Açores, ilhas pelas quais parece ter uma paixão muito especial), títulos disponíveis na Bloom. Agora acaba de ser lançado “Tive de o Matar”, uma história muito diferente das anteriores: divertida e irónica, a espargir sangue por muitos lados como algumas personagens de ‘Kill Bill’ de Tarantino, politicamente pouco correcta, e a cruzar a imaginação com violentas pulsões primárias. Romana Petri mostra a plasticidade das suas capacidades narrativas numa história bem arquitectada, com sucessivas mudanças de plano (como se de um filme de acção se tratasse), e pensada para ser um romance singular escrito num registo muito próprio.
Lulu, a personagem principal que afinal não se chama Lulu (não se chega a saber o verdadeiro nome), tem trinta e oito anos, é separada, vive em Roma com um filho pequeno, e é professora de francês num estabelecimento prisional feminino. Vai ouvindo as histórias das suas alunas, algumas condenadas por terem assassinado os maridos porque eles lhes foram infiéis, e elas os “apanharam em flagrante delito”. E começa uma espiral de descrições dos crimes, dos pormenores mais sangrentos, dos impulsos vingativos, e tudo com uma ausência de culpa que a princípio parece inverosímil, e que não se encaixa na mente de “simples homicidas acidentais”, mas que aos poucos se vai “justificando” no registo irónico e no género da ficção “pulp”. A estranheza transforma-se em objecto cómico e o leitor entra no jogo. Como neste exemplo: “E foi uma casualidade estar um martelo em cima da cómoda, porque precisamente no dia anterior pendurara na parede uma imagem de Nossa Senhora, que tinha comprado para que a protegesse de todas aquelas aflições, que de repente a tinham transformado noutra pessoa. E essa Nossa Senhora pendurada na parede olhava timidamente para baixo, exactamente como se olhasse para o martelo e, de modo discreto, lho indicasse. Então, pegou nele e desferiu a primeira pancada na testa daquele traidor (…) tinha aquele ar arrogante que os homens têm vinte e quatro horas por dia, quando traem a mulher.”
Mas dos crimes narrados pelas mulheres encarceradas (e também pela velha Ângela, uma divertida personagem cuja função no romance é fazer a “ligação” entre o fantástico e o real), depressa se passa a outro nível da acção. Lulu começa a receber visitas de famosos e intrépidos guerreiros. Durante as noites chegam ora Alexandre Magno, ora Ricardo Coração de Leão, e também de vez em quando Lawrence da Arábia (mas este aparece com a figura de Peter O’Toole, de outra maneira ela não reconheceria a verdadeira face de Lawrence). Devagar, com muita conversa, vão estes guerreiros tentar ajudar Lulu a fazer algo que ela ainda não descobriu que sabe que quer. Cinco anos tinham passado desde que ela se separara do marido, e pela mesma razão que as alunas tinham cometido os seus crimes. Ele enganara-a … com várias anãs. “O meu marido, nu, agitava-se como um louco debaixo de um enxame de anãs. E o seu frenesim embriagado era tal que nem se aperceberam de que entrara na sala. Só se deram conta quando uma delas, casualmente, se virou na minha direcção, e então sim, gritaram todas juntas e em uníssono saltaram, espalhando-se pela sala com a velocidade dos ratos.”
“Tive de o Matar” é um verdadeiro e conseguido exercício de imaginação. E um dos romances mais singulares dos últimos tempos.
[JOSÉ RIÇO DIREITINHO]

Tive de o Matar, Romana Petri • CAVALO DE FERRO • 2007 • EM BREVE NA BLOOM

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