A Doninha

'Proprietária', de possuidora de bens patrimoniais, julgamos que seria melhor, depois de se ler o livro e segundo o título original: 'Property', da americana Valerie Martin, autora também de Febre Italiana e Mary Reilly. Mas essa beliscadura não estraga a tradução integral de Margarida Periquito desta edição da Cavalo de Ferro de 2005, nem nos afasta, apesar do tema, de uma leitura cativante: a escravatura no estado de Louisiana no sul dos EUA, no século dezanove. Só que esta narrativa é contada pelo lado da proprietária dos escravos, onde relata de forma insensível e por vezes irónica, a relação com os seus negros, a desumanidade dos capatazes da plantação do marido, os seus problemas pessoais, o casamento e a sua sexualidade. Manon Gaudet casa com um proprietário de uma plantação de açucar do estado de Louisiana, e não demora muito a verificar que é infeliz, o que torna os actos sexuais entre os dois num tormento para ela. Não por isso, o marido amantiza-se com a sua criada Sarah, a prenda de casamento de uma tia, de quem depois tem dois filhos, Walter um deficiente mental que deambula pela casa aos guinchos e uma menina que Sarah vem amamentando quando iniciamos a leitura da obra. As duas odeiam-se como é de esperar e odeiam igualmente o dono da plantação. A dificuldade de Manon em engravidar leva a uma consulta médica. Esta concorda com o médico que a razão nada tem a ver com qualquer falha física, mas sim pelo desprezo que sente pelo marido. A frieza e a inactividade são tantas que ela sarcasticamente pergunta ao marido, se já acabou. — “Não estou interessado em fazer amor com um cadáver”, diz ele. Fazer amor? O homem esborrachava-lhe os seios, arfava que nem uma locomotiva em cima dela... Isto não só a descrição da vida conjugal de Manon. É mais. Um dia a criada acaba de dar peito à menina e uma gota de leite fica empinada no seio escuro de Sarah. Manon, guiada pela imagem, pelo desejo, a frustração, a transgressão, a fome, tudo junto, deixa-se cair de joelhos e começa a lamber-lhe e a chupar os seios, o leite, as dores de cabeça desaparecem-lhe, relaxa, “ouvia um som, um suspiro, mas não tinha a certeza se vinha de mim ou de Sarah”. Esta nem ousa mover-se. Depois há uma revolta de escravos, morrem vários brancos entre eles o marido de Manon que é decapitado à sua frente, e Sarah aproveita para fugir para um dos estados do norte. A proprietária contrata um dos melhores caçadores de escravos que havia e ao fim de algum tempo consegue recuperá-la. — “Quando chegas ao norte eles convidam-te para sentares na sala de jantar, e perguntam-te se queres natas e açucar no café. — E isso, seduziu-te? Sim, seduziu-me”. É o bastante, não é preciso falar do gosto da liberdade e do valor autónomo da dignidade inerente a qualquer ser humano. O que fica por dizer ao longo do livro mas que se percebe foi uma das razões que levou o jurí a atribuir a 'Propriedade', de Valerie Martin, o Prémio Orange de Ficção de 2003, num tema inspirado pelas leituras de Slave Narratives da Library of America, American Negro Slave Revolts, Runaway Slaves, etc, conforme lista da autora na página de agradecimentos.

Propriedade, de Valerie Martin
• CAVALO DE FERRO • 2005

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