A rolar pela estrada

Lembro-me de ter nascido, ou então de ter mudado inteiramente tanto de alma como de pele, pelo menos uma meia dúzia de vezes ao longo da vida e nenhuma delas foi lá onde terei, pela primeira vez, dado conta da luz do mundo. De que havia uma matriz geográfica que essa é que me dizia de facto muito intimamente respeito pela via quem sabe de uma qualquer memória genética, dei conta aos doze anos - lembro-me sempre de cada vez que ainda por lá passo e se calhar é para isso que ando sempre a ver se passo por lá – a comer pão e com um ataque de soluços no meio do deserto de Moçâmedes, por alturas do Pico do Azevedo. E de que havia uma razão de Angola que colidia com a razão de Portugal, disso dei definitivamente conta já a trabalhar nas matas do Uíge quando, em março de 1961, eclodiu a sublevação nacionalista no norte de Angola. Sobrevivi então aí absolutamente à justa e a tempo de me refazer de tanta perplexidade e de tanto horror, tanto insurreicional como repressivo, quando a seguir, numa memorável noite em Luanda, houve quem me sussurrasse, em passeio pelas ruas da baixa, versos nacionalistas de Aires de Almeida Santos e de Viriato da Cruz que me revelaram uma alma de Angola que se me vinha oferecer sob medida e pela via do arrepio para eu ajustar à razão de Angola que a sublevação tinha acabado de me dar a reconhecer in vivo, e de que a partir daí passei a socorre-me para ver se conseguia conferir algum sentido à condição de orfão do império a que a vida, apercebi-me logo, me tinha destinado. Quando logo a seguir, também, a idade e o desamparo me colocaram com um papel na mão para apresentar-me no Huambo ao serviço da tropa colonial, e depois fui transferido para Luanda, já tinha conseguido que alguns mais-velhos da luta clandestina nacionalista me atribuíssem mínimas tarefas menores, como dactilografar, para posterior distribuição pelos musseques, poemas de revolta de autoria anónima e esclarecedora má qualidade. Mas depois foi uma data de gente presa e a tropa só não me entregou também à pide porque o comandante da secção de justiça do quartel a que eu pertencia era casado com uma filha de Moçâmedes e decidiu arriscar, e os informou que preso já eu estava, por razões disciplinares. Passei ainda uns tempos fardado de soldado português a fazer desenhos no quartel-general, mas depois fui requisitado, como técnico agrário, pelo instituto do café, e mandado para a Gabela e mais tarde para Calulo. Ligações políticas efectivas com a insurgência nacionalista, nunca mais encontrei maneira de as restabelecer... e também nada ajudava... nem a cor da pele que é a minha nem o cargo de engenheiro que ocupava... e o máximo que consegui foi ser dado como persona non grata pela administração do Libolo, junto com um padre basco e um médico português, e afastado compulsivamente dali. Pouco para currículo político.
SOBRE O AUTOR
O angolano Ruy Duarte de Carvalho (n. 1941) é antropólogo doutorado pela École des Hautes Études en Sciences Sociales, Paris. Exerceu a actividade de Professor da Universidade de Luanda e foi Professor Convidado na Universidade de Coimbra (Portugal) e na Universidade de São Paulo (Brasil). Estudou cinema em Londres e realizou inúmeras horas de cinema directo filmado entre populações do sul de Angola.

A câmara, a escrita e a coisa dita...
de Ruy Duarte de Carvalho

ESTE É O TÍTULO DE FEVEREIRO DOS LIVROS COTOVIA• 464 PÁGINAS • CAPA DURA

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