S. Lázaro | Ilustrador Peter Suart apresenta “The Master and Margarita” na Bloom
O bem só existe porque o mal anda por aí. Considerado um livro dos demónios, “The Master and Margarita” é a obra-prima de Mikhail Bulgakov. Peter Suart, artista britânico com fortes ligações a Hong Kong, vem hoje a Macau explicar porque é que o escritor do início do século passado é incontornável. E falar das razões que o levaram a ilustrar as palavras do russo maldito.
O encontro com a obra de Bulgakov aconteceu há já alguns anos. Peter Suart identificou-se com a abordagem do mundo feita pelo escritor e dramaturgo russo, um mal-amado de Estaline. Gostou do tom – da ironia e do sentido de humor. Um dia, o artista britânico multifacetado que cresceu em Hong Kong recebeu uma proposta de uma editora de Londres: ilustrar “The Master and Margarita”, obra-prima de Mikhail Bulgakov. No processo, encontrou semelhanças com a sua própria forma de encarar o mundo. E de o passar para o papel.
“É a obra-prima de Bulgakov e tem uma história muito peculiar: em parte, diz respeito a um escritor que não consegue ver o seu livro publicado”, resume Peter Suart ao Hoje Macau. “E é isso que acontece ao livro de Bulgakov, que foi publicado apenas depois de o escritor ter morrido. Há um curioso eco entre o livro e a vida, o que é muito interessante.”
Esta coincidência (ou não) entre a criação e o criador é importante, porque a obra representa uma “vitória” de Bulgakov. Não em vida, já na morte. O livro foi amaldiçoado, à semelhança do seu autor. “The Master and Margarita” começou a ser redigido em 1928. Dois anos depois, o autor queimou o primeiro manuscrito, quando uma outra obra sua foi interdita. Em 1935 voltou a dedicar-se à construção das personagens. Diz-se que Margarita foi influenciada pela sua terceira mulher, com quem tinha casado três anos antes, e que acaba por desempenhar um papel fundamental para que o livro seja concluído. Seguiram-se mais duas versões – partes da final foram ditadas por Bulgakov à mulher.
O mestre morreu sem que tenha tido tempo para concluir a obra. Margarita fez o resto. Só em 1989 é que a Rússia publicou o livro na sua versão integral, sem quaisquer censuras.
Do Yin e do Yang
Oitenta anos depois de ter começado a ser escrita, “The Master and Margarita” continua a ser uma obra que incomoda. Pelos temas que aborda, intemporais e transversais – o bem e o mal, a inocência e a culpa, o racional e o irracional, a ilusão e a verdade. Jerusalém consta da obra e Moscovo também.
A Peter Suart agrada-lhe particularmente a visão de Bulgakov em relação a Jesus, na medida em que o entende como ser não divino. “Em parte, foi por isso que gostei tanto do livro. A descrição que faz do dia da morte de Jesus é muito convincente - e eu sou uma pessoa sem fé. Bulgakov apresenta Jesus enquanto um homem com um contexto muito especial, o que vai de encontro àquilo que penso.” Sobre certos domínios da vida do escritor não se sabe muito e o ilustrador não tem a certeza de que Bulgakov fosse totalmente alheio a convicções de índole religiosa. “Os pais tinham fé. A posição dele não é explícita neste âmbito. Mas, por aquilo que se vê no livro, é muito clara a representação de Jesus como um ser humano.”
O artista tem noção de que se trata de uma “questão muito sensível”, esta da materialização do filho de Deus. Por isso, garante “respeito” na abordagem que vai fazer hoje à tarde, na Livraria Bloom, no Albergue de São Lázaro. “No entanto, não vou deixar de dizer o que penso. E eu considero que é muito importante sermos capazes de falar abertamente sobre estes assuntos”, defende.
A dicotomia entre o bem e o mal são temas que não podem escapar a uma abordagem sobre “The Master and Margarita”. “É um dos problemas mais antigos. Há um parágrafo neste livro em que se defende que não pode haver o bem sem que exista o mal. É o conceito de yin e yang – não podemos ter um sem o outro.” O ilustrador concorda com esta perspectiva, mas acrescenta que, “na vida, tenta-se minimizar a existência do mal”.
Peter Suart lembra que estes conceitos nem sempre foram bem interpretados por quem lê Bulgakov. “A forma como encarou este tema deve ser entendida como uma metáfora, como uma forma de pensar o mundo, não como uma verdade literal.” As leituras feitas sobre o demónio ultrapassam Estaline e a sua época. Há menos de dois anos, o museu baptizado com o nome do escritor, em Moscovo, foi vandalizado por fanáticos que alegaram que “The Master and Margarita” é obra do diabo.
“Bulgakov não condena a figura do diabo no seu livro. A forma como escreve sobre ele é muito invulgar – é uma figura com charme, civilizada. Mas isto não significa que o mal seja bom. É apenas algo enigmático.” Por isso - e pela fidelidade das imagens às palavras – o ilustrador também não sataniza o diabo. “Não há uma posição moral directa no conjunto de ilustrações.”
O livro que pede para ser ilustrado
Suart, autor das narrativas dos seus livros desenhados, explica que não foi difícil ilustrar “The Master and Margarita”. É um escritor “fantástico e com um grande sentido de humor”. E acrescenta que “tem uma escrita muito visual e a narrativa é muito completa – é um livro que pede, ele próprio, para ser ilustrado.” E já o foi muitas vezes, com outras interpretações que não a do artista britânico. O que diminui, de algum modo, a responsabilidade final do ilustrador.
Até que ponto as imagens, de leitura mais imediata do que as palavras, condicionam o leitor? “Há várias versões do livro. Claro que se as pessoas lerem aquela que ilustrei primeiro, o peso das minhas imagens será maior. Mas, quando se pensa no processo editorial desta obra, a minha versão é apenas uma entre muitas, pelo que a minha responsabilidade não é assim tão grande”, esclarece, ressalvando que, “fundamentalmente, a ilustração tem um dever para com o leitor”. Peter Suart fez “muita pesquisa sobre o livro” para chegar à conclusão de que deveria associar as imagens às estações da Via Sacra.
O ilustrador conta ainda que, embora tenha começado a escrever os seus livros antes de ler Bulgakov, algumas das suas ideias estão no trabalho do escritor russo. Talvez seja a transversalidade das ideias. Suart não se afasta do escritor da Rússia de Estaline no que diz respeito “à natureza de Jesus e Maria”.
Peter Suart nasceu na Jamaica e cresceu em Hong Kong. Partiu para o Reino Unido para estudar. Em 1985, regressou à então colónia britânica para trabalhar enquanto artista plástico, músico, escritor e actor, mas em 1999 voltou para Inglaterra. É autor de uma série de livros ilustrados, “The Tik and Tok Adventures”. Fala fluentemente cantonês. A palestra de hoje, com início marcado para as 18h00, será feita em língua inglesa.
[POR ISABEL CASTRO NO HOJE MACAU]
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