Lições de Fotografia (I)

Eu ouvi-te bem, mas não quis ligar. "Leva a 200", disseste tu. Eu só levei a 50. Era só o que tinha. Não lhe disse que não tinha nenhuma 200, que não tinha dinheiro para a comprar. Ainda.
Eu penso sempre que uma 50 é boa para tudo. Para o bom e para o mal. Não se inventa, vive-se a cru. É como se não tivessemos máquina nenhuma. Como se o nosso olhar bastasse e os nossos bolsos, em contínuo, guardassem as imagens que vamos retendo na necessidade de piscar os olhos.
Isto é tudo teoria, porque a prática é bem diferente. E quando se tem de fotografar uma corrida em que os homens usam os animais, em que o que a rodeia é um charco de lama, já se sabe onde vamos parar. Mas isso não importa, faz parte dos prazeres desta vida e eu agradeço. Furar. Entrar pelo buraco da agulha e estar lá ao pé do relógio e das coisas que acontecem. Olhamos pelo rectângulo da máquina e vivemos momentos únicos em que a beleza da vida se veste por pequenas linhas e formas, encavalitada na velocidade da nossa mente. Essa é a vertigem do real. É um desafio, podermos ter isto para contar mais tarde. Contá-lo como uma recordação que guardamos para nós. É um contacto intímo com o mais profundo do nosso ser. Não há mais ninguém ali e no entanto estamos em plena convivência com tudo o que existe no mundo.
Eu estava na lama a fotografar. Enfiado até aos joelhos, com o galope a entrar-me no obturador, a ocupá-lo de ponta a ponta, e sem nenhum esforço a levá-lo comigo para o tempo eterno, emprestando-o a todos aqueles que não podiam estar no meu lugar, naquele preciso instante. Sorridente porque a 50 me permitia ter aquele sabor. Estar ali perto, com o segurança lá atrás aos gritos a proibir-me e a chamar um milhar de outras pessoas que queriam zelar pela segurança dos acontecimentos, mas que se punham de olhos bem abertos para ver aquilo que eu estava a fazer. Não ali, não àquela hora, mas mais tarde, num impresso inter-planetário que iria escovar as costas do mundo.
Quando voltei e passei as imagens para o teu ecrã ficaste a imaginar como era possível aquilo tudo com uma 200. Não te expliquei. Deixei a dúvida a pairar. Ainda tinha as calças sujas, duas manchas que marcavam a fronteira da minha audácia e o chão do teu escritório cheio de terra. E porque sei que percebes o que é a verdade, sorriste comigo e reviveste aquele pequeno passado que a partir dali deixava de ser só meu.

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