O Diabo não arde

Sátira política, fantástica e lírica, "Margarita e o Mestre" esteve proibida na URSS durante quase 30 anos. Uma obra-prima do romance do século XX

Mikhail Bulgakov escreveu "Margarita e o Mestre" em segredo, ao longo de onze anos, entre 1929 e 1940, numa Moscovo em que as suas peças eram insultadas (e depois proibidas) pela crítica oficial mais diligente, e os seus amigos iam desaparecendo, exilados ou executados - aquilo a que se veio a chamar terror estalinista.
Enquanto escrevia, noite após noite, Bulgakov sabia que ia morrer, como o seu pai morrera, de uma doença hereditária dos rins. Previu mesmo o ano em que morreria, 1939. Falhou por meses. Morreu, de facto, a 10 de Março de 1940, ainda não tinha cumprido 49 anos.
Duas semanas antes, já cego, e sem poder sair da cama, ditou as últimas emendas ao romance a Elena Sergueievna Shilovskaia, sua terceira mulher - a Margarita do livro, a sua Margarita. Tinham-se conhecido em 1929, casaram-se três anos depois, foram inseparáveis até ao fim.
Com uma fé inabalável no futuro, ela guardou tudo o que ele foi escrevendo, obras (manuscritas, banidas) e cartas. E depois da morte de Bulgakov passou quase 30 anos a lutar pela publicação de "Margarita e o Mestre". Em 1966, o romance veio pela primeira vez à luz, na revista "Moskva", com passagens censuradas. Só no início dos anos 70 foi publicado em livro. Elena morreu, pouco depois.
Aclamado como uma obra-prima um pouco por todo o mundo, quando as primeiras traduções começaram a ser publicadas, "Margarita e o Mestre" continuou, no entanto, sujeito a uma circulação restrita na URSS da Guerra Fria. Tornou-se um romance de culto genuinamente popular, passado de mão em mão, pago a peso de ouro no mercado negro. Só com a perestroika - a que se seguiu, em 1991, o centenário do nascimento de Bulgakov - foi oficialmente "reabilitado". Lido hoje, permanece dificilmente classificável, livre e absoluto, portanto.
Sátira política das misérias do aparelho estalinista, com seu séquito de siglas, funcionários, delatores, trafulhas e mentirosos de meia-tijela, que escondem divisas estrangeiras nas canalizações da casa-de-banho e se esgadanham por mais uma salinha, mais um metro quadrado nos apartamentos comunitários? Romance fantástico que convoca o diabo, com sua corte de saltimbancos, para semear o caos na capital da revolução, e retoma o mito de Fausto no feminino, fazendo de Margarita rainha-anfitriã de um grande baile satânico? História de um amor além da morte, ferozmente lírico e nunca sentimental, o de Mestre e Margarita? Fábula metafísica, que evoca Cristo e Pilatos no lugar vazio deixado pela erradicação oficial do bem e do mal?
"Margarita e o Mestre" será tudo isto e o que cada leitor quiser, ainda. Escrito em segredo, e proibido tantos anos, é uma prova de que toda a arte é íntegra ou não será. Ou de que - como diz o diabo de Bulgakov - "os manuscritos não ardem".
[ALEXANDRA LUCAS COELHO / PÚBLICO]

"Margarita e o Mestre", de Mikhail Bulgakov • RELÓGIO D'ÁGUA

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