Baby, está frio lá fora!
Naquela livraria há duas longas prateleiras cheias de livros. Largas centenas, talvez milhares. Estão empilhados ao monte e arrumados sem nexo por alguém que não tem tempo ou destreza para o fazer. Os volumes, não sua maioria cópias contrafeitas na própria casa, umas copiadas à mão outras à máquina, foram ordenados arbitrariamente. E para lá ficaram sem refilar confortados no seu infortúnio. Tanto que eu mendigo por um sítio destes, onde possa comprar livros com esse peso incalculável que vive para além do conteúdo das palavras que lhes vestem as tripas. Obras impressas com paixão, sempre, sem o objectivo necessário do lucro ou a avareza mercantil do negócio puro. Um espaço onde se possa estar a decifrar as páginas que formam estes objectos únicos seguindo as letras calmamente, uma a uma, esperando que as frases se alonguem em linhas e se consagrem num mundo mágico dentro do nosso espírito, por múltiplas páginas; e no final, acariciados dentro das nossas mãos, levá-los para a caixa registadora e sair sem deixar em troca a roupa toda. É raro encontrar um sítio assim. Onde o vender por vender não é de todo o mais importante. Uma livraria é sempre um espaço de culto onde se venera essa unidade central construída pelos habitantes de todos as histórias e pelos seus autores.
Aconteceu-me há uns dias encontrar um espaço assim. Entrei e perdi-me, desaparecendo por completo. Não me lembro em que rua fica, desconheço o seu local exacto, sei que se situa no norte, na fronteira que separa a zona mais antiga da cidade dos bairros de habitação social, uma espécie de Caxemira perdida na floresta de prédios que escondem o beijar do sol. Lá estavam. Duas longas prateleiras que se olham de frente, sem pestanejar, num corredor fundo e mal iluminado. Dir-se-ia luminoso apenas pela luz que bate no pavimento da rua e que rodopia para o interior da loja. Lá dentro o pó dificulta a sua progressão, acabando num indecifrável quadro negro que seria uma parede branca se por acaso existisse o rasgar de uma lâmpada.
Peguei num livro ao acaso, um livro minuciosamente ilustrado à mão, exemplar único, disse-me o guardião daquele templo, que me vigiava os passos. Quando o inquiri acerca do título da obra, uma edição em chinês, respondeu-me que se tratava de uma versão do D. Quixote de Cervantes. Talvez alguém que leu a obra original e fascinado pelo seu enredo debitou das próprias mãos as cores do invólucro feito na memória. Qualquer coisa assim. Teria sido deixado por um viajante que o trocou num casino por quatro fichas de jogo. Abri-o, sem mais. Numa das páginas, envelhecidas com o fundir do tempo, onde três cavaleiros galopam em cima de cavalos agoniados, nenhum deles parecendo o Sancho Pança, dou com um fotografia colada do lado esquerdo. Uma polaroid! Nesse relance, ainda sem a noção imediata do reconhecimento, contemplo uma figura observada por um grupo de camponeses que me olhavam cheios de espanto. Tristes, dei comigo a pensar. Mas o que quase me fez desmaiar foi ver-me representado na clausura plana daquela imagem. Preso e cabisbaixo. Sim, lá estava eu, ao fundo, com um cartaz ao peito onde estava escrito o meu nome. Não quis acreditar no que estava a ver. Tudo aquilo era impossível. Nem um sonho poderia ser.
Constrangido fechei o livro e caminhei para o fim do corredor. Queria pensar mas não era capaz, o ar estava demasiado congestionado. Sentei-me em cima de uma resma de capas duras e onde acabava uma das estantes, à minha frente, estava uma parede de vidro fosco. Um vidro fosco que quase parecia borracha. Ou uma substância pastosa, quase líquida, dependurada na vertical sem se distrair e cair para o chão. Seduzido aproximei-me dela, tocando-lhe. O que aconteceu foi que a minha mão desapareceu lá dentro e quando a retirei, sem esforço, senti-a mais fria. Pousei no chão tudo o que trazia comigo e sem me importar com o velho dono da loja, que me puxava o ombro, dei uma grande salto para a frente.
O que se seguiu não sei bem o que representa. No instante seguinte estava no meio de uma multidão em fúria. Rapazes e raparigas de dentes mal lavados brandiam nos punhos pequenos livros vermelhos. O Livro Vermelho do Camarada Mau, reconheci prontamente. Não sei que terra era aquela, parecia-me tudo muito longe, frio e seco. Um Inverno que me saltou para cima sem qualquer aviso prévio. O meu relógio marcava a mesma hora, dez da manhã. Talvez aquilo fosse uma escola, não dava bem para ver, a profusão humana em delírio, uma matilha imberbe que saltava e gritava esgares sem nexo, ocupava todo o horizonte. Ao meu lado um grupo de homens acorrentados e deitados no chão, quatro ou cinco, comiam páginas de livros. Não era bem comer já que em frente a eles umas enormes espátulas empurravam todo aquele degusto matinal. Mais atrás o crepitar de uma enorme fogueira, onde ardia um incontável número de livros, ocupava o resto da paisagem.
A primeira coisa que me fizeram foi empurrar-me para o meio de um grupo de homens assustados, ordenando de seguida, com ajuda de uma vareta que me vincou o pescoço, que me despisse. Falavam a minha língua porque os percebia, mas tudo o que ouvia era um sibilar de sons desconhecidos. Nem tive tempo de formular qualquer tom de pânico, porque nada daquilo cabia dentro dos meus sentidos e dos meus pêsames. Obedeci. De longe choveram umas patéticas túnicas que sem pensar vesti de imediato. Os jovens enlouquecidos, com as suas pequenas armas pontiagudas, atiravam a doer sem que alguém lhes pudesse governar os ânimos. Aquilo era um joguinho. E eu compreendia o que eles estavam a fazer, porque já tinha lido sobre isso. Mas tomar parte do evento era estar com os dois pés dentro de um inferno muito particular. Aquele movimento de caça a quem ainda tinha um pensamento válido dentro da cabeça, que por alguma razão estudava, criava, ou pertencia ao mundo das artes ou do ensino – a que denominavam com o pomposo nome de contra-revolucionários – regia-se pelo livre arbítrio sem olhar a uma grande lógica, atingindo apenas o fim. Eram hordas de ultra-radicais insuflados que escovavam da face da nação tudo o que lhes fizesse frente. E o fazer frente era não fazer nada, era existir apenas, era saber, era ter um pensamento que fosse fora da ordem que moldava aquele regulamento transitório. As vítimas destes Guardas Vermelhos eram socadas e chutadas por turbas vociferantes e furiosas. Milhares com destino incerto e em certas cidades desapareciam em massa.
No meu caso, depois de me raparem o cabelo, berraram para que escrevesse o meu nome num painel branco que colocaram no chão. Não me deixaram mais espaço, não me deram mais tempo, pegaram em mim e atiraram-me para o meio da praça, para dentro de um palanque onde me deram uma enciclopédia e um pacote de manteiga. Eu deixei que tudo caísse aos meus pés, derrotado. Uma marcha de cornetas e tambores preparava-se para dar a ordem de partida. Para dar continuidade àquela paródia. Foi nesse instante de espera que apareceu alguém com uma máquina fotográfica. Uma linha de mulheres à minha frente de pronto se compuseram e um homem de vinte e poucos anos, vestido com as minhas roupas, desatou a disparar para todos os lados, eu não queria olhar, fixava apenas o chão. Disparava, disparava e disparava. E as imagens, instantâneas, a caírem para dentro de um saco. Eu, com o nome feito em letras de imprensa pendurado ao peito, numa sequela de toda aquela alucinação, dei de novo com o mesmo plasma líquido à minha frente, desta vez a mexer-se no chão, a troçar de mim. Não pensei duas vezes, debrucei-me no varandim e deixei-me cair até ser engolido por aquela pasta húmida. Soube-me bem.
Vim parar de novo ao chão da livraria repleto de pó. O velho monge, guardião do estabelecimento, morto de riso por causa da minha vestimenta, deu-me a mão e ajudou-me a pôr de pé. “Muito perigoso ali dentro”, disse, “tem monstro feio que come criancinha!”. Peguei no meu nome que ainda tinha ao peito e pendurei-o num prego por cima da parede de vidro. O homem deu-me as minhas coisas e com as duas mãos estendeu-me o livro, “oferta da casa, amigo”. Abri-o e a fotografia continuava lá, lembro-me bem, agora. Os cavaleiros a galope fugiam da revolta da cultura que dentro dos moinhos de La Mancha os perseguiam em estridentes cantorias. D. Quixote nem vê-lo.
NOTA: Este texto é uma paródia sobre a extensão do tempo. Inspirado num livro do Henry James chamado The Sense of the Past em que o protagonista se vê representado numa pintura do século anterior. Daí, fascinado pela tela, consegue transferir-se para a data em que a executaram. Entre as pessoas que encontra, figura necessariamente o pintor e este pinta-o com temor e aversão. Chama-se a isto o regressus in infinitum. A causa é posterior ao efeito, o motivo da viagem é uma consequência da viagem.
Eu queria escrever sobre a Revolução Cultural na China, que se estendeu entre 1966 e 1976, ano em que o "Grande Timoneiro" faleceu. É uma pequena escovadela à memória.
[Foi publicado no HOJE MACAU em Agosto de 2005]
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