Do fundo do coração *

Em Janeiro de 1995 José Cardoso Pires, que fazia 70 anos no Outubro seguinte, sofre um acidente vascular cerebral. Foi uma pausa breve, um tremor, que durou apenas o suficiente para que na sua inconsciência pudesse presenciar a minúscula figura da morte. Se tivesse compreendido o que lhe estava a acontecer poderia ter suspirado e dito: “é assim que acontece, é assim que as pessoas morrem”, mas não teve tempo para isso. O que se lhe seguiu foi algo que até então desconhecia: a penumbra do esquecimento. Estava sentado, com uma chávena de chá na mão, lá fora uma manhã cinzenta, e de repente dentro de si, talvez uma janela mal fechada, desordenou essa corrente de ar que percorreu tudo o que era seu e que o compunha como ser humano. Sem dor, sem inteligência. A partir daí o Nada. “Silêncio brusco”. Um espaço em branco, vazio pela frente, que foi necessário descobrir e preencher de novo. Não como se tratasse de um reconhecimento, mas um paralelo de uma nova vida que sendo a sua era a de outra pessoa em simultâneo.
Tudo se tornou realmente diferente para Cardoso Pires e De Profundis, Valsa Lenta, escrito pelo ano seguinte e apresentado em 1997, relata precisamente esse percurso de descoberta e todo o período que se lhe seguiu. O neurocirurgião João Lobo Antunes, que faz a introdução à obra, usa os termos recém-nascido e amigo-novo. E explica de forma mais científica a razão pela qual o seu escritor conseguiu recuperar, “o escritor que veio do branco”, ao contrário da maioria dos pacientes que sofrem de crises idênticas e que ficam com profundas marcas para o resto da vida, a área que temporariamente «deixou à sede e à fome, e pela qual falava, lia e escrevia, tudo funções em que é exímio, era mais musculada que a do comum dos mortais.»
É um livro pequeno, de poucas páginas, que se lê de uma só vez no limiar de um sopro cardíaco. Dele fica sobretudo o hino à vida. A vida inversa que trouxe Cardoso Pires de volta. Feita de aprendizagem, das palavras, dos outros, dos mecanismos de construção do ser, que o deixou e o substituiu por alguém que se tornou apenas habitante do seu corpo. E este habitante vive um paradoxo: vê, estando às escuras, e, por estar às escuras, assiste à sua própria vida. É um escritor sem memória, a estrutura única do conhecimento que organiza o nosso mundo, que vive na experiência do caos e se vê a transitar pelas pessoas e a trocar o tempo e os seus significados.
“Sem memória esvai-se o presente que simultaneamente já é passado morto. Perde-se a vida anterior. E a anterior, bem entendido, porque sem referências do passado morrem os afectos e os laços sentimentais. E a noção do tempo... também isso se perde porque a memória, aprendi por mim, é indispensável para que o tempo não só possa ser medido como sentido.”
Tudo é luz e brilho nesta escrita de Cardoso Pires, apesar de toda a escuridão da “desmemória”, e ilumina-se da doçura de uma criança – no corpo de um homem de 70 anos - que escorre pela escassez do tempo do qual perdeu a conta e que vive agora de simples prazeres. Por ganhar a pouco e pouco o sentido, por estar a aprender o mundo que o rodeia, o nome dos objectos, a recordação das pessoas que lhe são queridas. A descoberta do significado afectivo e das referências emocionais próprias que vivem da existência da memória. A observação sistemática de si a ver-se retornar a um modo funcional e poder compreender, por exemplo, a necessidade de pegar num pente e não numa escova de dentes para se pentear.
É lúcido tudo o que escreve, embora distorcido e aos rombos, como se nunca antes tivesse sido assim tão profundamente claro, no que sente e no que deixa escrito, entre o grito de desespero por saber-se perto do fim e a pura alegria por estar a começar tudo de novo. Disso talvez tenha nascido a noção de que já não existia muito mais e tudo o que faltava conhecer estava ali, no desconhecido, e que veio por uma falha da brisa da sua mente.
Ao ler De Profundis, Valsa Lenta, somos assaltados por um número imenso de questões que flutuam pela noção de identidade. A velha questão do “eu e o outro”. Será a nossa identidade formada pelo conhecimento dos outros, pela figura que representamos, ou pelo conhecimento de nós próprios e por tudo aquilo que sentimos? Somos nós que nos fazemos, na posse de uma memória, ou os outros que nos constroem ao ritmo da sua percepção?
É tudo isto que faz deste livro, mais do que a sua narrativa, um dos símbolos não só de toda a carreira de um escritor mas também do seu poder criativo e, sem dúvida, da literatura portuguesa contemporânea, como se estivesse lá toda a pessoa, as vozes, as personagens que percorreram todos os seus livros, a lutar pelo poder da sua criação e pelo sentido da sua existência. Não é de todo uma obra que à partida se possa inserir no âmbito de uma autobiografia, não foi de todo essa a intenção do autor, deixar uma memória, porque na verdade trata-se da falta dela.
No ano seguinte a ter visto o seu livro publicado, Cardoso Pires, sofre outra série de AVCs que o deixam permanentemente em coma. Acabaria por falecer em Outubro de 1998.
No meio de tudo, do primeiro prenúncio, foi como se tivesse esquecido de escrever esta sua obra, um testemunho que dirige aos ventos de quem cá fica. Que retardou, por breves momentos, a última página da sua vida e a palavra "Fim".

* no seu original em latim, Ab imo corde, modo com que João Lobo Antunes fecha a carta dirigida ao autor e que faz a introdução a esta obra.

De Profundis, Valsa Lenta de José Cardoso Pires • PUBLICAÇÕES D. QUIXOTE • 16ª Edição • 2006
[PUBLICADO NO TAI CHUNG POU DE HOJE, DIA 7 DE OUTUBRO]

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