Se sabemos que existe logo se pensa

Quando um livro de contos começa com uma preciosidade de cinco páginas chamada Deram-nos a Terra, e logo aí justifica a sua existência como obra, quer dizer que a mão que lhe deu forma não brincava à literatura quando o escreveu.
Poucos serão os escritores com obra tão breve como Juan Rulfo (este livro de contos mais a novela Pedro Páramo são toda a sua produção literária) capazes de o superar em influência e importância. Rulfo é para a literatura de língua espanhola o que William Faulkner é para a de língua inglesa. Um instante de renovação que marca o futuro.
A Planície em Chamas de Rulfo surge em português, editado pela Cavalo de Ferro, no ano em que se cumpre o cinquentenário da sua primeira publicação no México - na reedição, em 1970, seriam incluídos mais dois contos - A Herança de Matilde Arcángel e O Dia do Desmoronamento - aos 15 que dele faziam parte inicialmente.
Rulfo não se interessava pela cidade, apesar de ter chegado à capital do México ainda cedo. O seu universo era o campo e a sua linguagem a popular. O que ele queria era «utilizar a linguagem do povo», essa que tinha ouvido dos mais velhos e «que continua viva até hoje».
Escrita seca e áspera como a terra por onde andam as suas personagens: mortos para ser ou mortos já. A paisagem é cruel, inclemente, povoada por habitantes sem remorsos. Para contar as histórias, recorre-se muitas vezes à personagem que narra em monólogo à que se mantém como ouvinte. Um outro que somos nós.
Tal como em Pedro Páramo, onde um morto contava a história como se estivesse vivo sobre uma aldeia de fantasmas, de almas penadas, também aqui Rulfo abdica do espaço e do tempo como coordenadas reais e coloca as suas personagens num tempo e geografia indefinidos. Que acabam e começam com cada conto; ou não começam, nem acabam, apenas ficam suspensas à espera do leitor.
Histórias de malparidos; de condenados; de foragidos; de seres humanos a quem nem o Sol dá uma ajuda. De gente que morre porque é mais fácil morrer; de vida que apenas é corrida desenfreada para o ataúde.
A paisagem aqui é marcada apenas pela terra dura e ingrata, sempre a exigir mais do que a dar. E pela água. Por inundações ou pela seca. Morrem vacas na enxurrada, mingua a ração e tornam-se fantasmas as aldeias pela falta de água e nós agarrados a essa narrativa escorreita, pele e osso, a ver morrer gente e a ouvir contar histórias de tristeza. «Não, o llano não é coisa que sirva. Não há aqui nem coelhos nem pássaros. Não há nada. A não ser umas quantas acácias raquíticas e uma ou outra manchinha de pasto com as folhas enroscadas; a não ser isso, não há nada.»
[António Rodrigues in Diário de Notícias]

Juan Rulfo foi um dos grandes escritores latino-americanos do século XX e nas suas obras apresenta-se uma combinação de realidade e fantasia, cuja acção se desenrola em cenários sul-americanos, e as suas personagens representam e reflectem o típico do lugar, com as suas grandes problemáticas socioculturais entretecidas com o mundo fantástico.
Muitos dos seus textos têm sido base de produções cinematográficas.
A partir de 1946 o autor dedicou-se também à fotografia, médium com o qual realizou notáveis composições.
Foi um incansável viajante e obteve prémios como o Prémio Nacional de Literatura no México em 1970 e o Prémio Príncipe de Astúrias em Espanha em 1983. Faleceu no México em 1986.

A Planície em Chamas, de Juan Rulfo CAVALO DE FERRO • TRADUÇÃO DE ANA SANTOS

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