Relação convulsiva

Entre os dias 10 e 19 de Novembro de 1919, Franz Kafka, insatisfeito com a fria recepção paterna diante do anúncio de seu noivado com Julie Wohryzek, escreveu ao pai, o comerciante judeu Hermann Kafka, uma longa carta, mais de cem páginas manuscritas. Kafka tinha então 36 anos, uma vida pessoal acanhada, nunca se casara ou constituíra família, uma carreira mediana de funcionário burocrático e uma ambição literária ainda longe de estar realizada. Na carta, que nunca foi enviada ao seu destinatário, Kafka põe a nu toda a sua mágoa em relação à autoridade do pai, que ele chama, alternadamente, de "tirano", de "regente", de "rei" e de "Deus". Numa experiência de auto-análise, além de uma belíssima peça literária, mostra como, a seu ver, o jugo paterno lhe minou a auto-estima, condenando-o a uma personalidade fraca e assustada.

Carta ao Pai, além de torturante prova da trágica ligação de Kafka com o velho Hermann, é um de seus mais célebres escritos. A carta, nunca enviada, encerrou literariamente, para o escritor, a tensão de um dia-a-dia asfixiante com a família, dominada por uma figura paterna tirânica e injusta, que não concedia misericórdia a ninguém. Lendo este texto e os Diários, é quase impossível separar a oficina literária de Kafka de suas preocupações como pessoa, os seus sentimentos e ideias a respeito dos que o cercavam, e do momento em que vivia.
Hermann Kafka não aceitava Franz, e essa não-aceitação extrema estava ligada ao facto do filho, entre outras coisas, se dedicar à atividade literária. Kafka chegou mesmo a afirmar que seus textos possuíam o único objetivo de tentar mostrar ao pai seu valor e sua importância. Escrevendo: "A minha actividade de escritor tratava de ti, nela eu apenas me queixava daquilo que não podia queixar-me junto ao teu peito".

Além de disponibilizar ao leitor de um dos textos mais emocionantes da literatura ocidental, estava edição destaca-se por dar prioridade à dimensão biográfica do seu autor. A leitura da carta e de tudo o que a envolve abre a luz sobre o drama humano universal do autor e faz-nos entrar dentro da sua angústia, que gerou obras-primas como O Processo, A Metamorfose ou América, entre outras.

Claro que não quero dizer que aquilo que sou se deve apenas à tua influência. Seria um grande exagero (e eu até tenho tendência para estes exageros). É bem possível que, mesmo se tivesse crescido completamente fora da tua influência, não conseguisse vir a ser um indivíduo a teu contento. Ter-me-ia tornado, talvez, um indivíduo mais fraco, mais ansioso, mais indeciso, mais inquieto, nem um Robert Kafka, nem um Karl Hermann, mas um ser completamente diferente daquilo que sou, e teríamos conseguido darmo-nos às mil maravilhas. Ter-me-ia sentido feliz por te ter como amigo, chefe, tio, avô, e até mesmo (se bem que com alguma reserva) como sogro. Só que como pai foste forte de mais para mim, sobretudo atendendo a que os meus irmãos morreram de tenra idade, e que só muito mais tarde viriam as minhas irmãs, pelo que tive de aguentar o primeiro embate completamente sozinho, sendo eu fraco de mais para isso.
Carta ao Pai, de Franz Kafka • RELÓGIO D'ÁGUA • MAR 2004

2 Comments:

  1. Anonymous said...
    Muitos parabéns pelo blog!
    Cumprimentos,
    Catarina
    Bloom * Creative Network said...
    Muito obrigado.

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