O fumo e o imaterial

A natureza que nos rodeia já não é composta de árvores e passarinhos, mas de fotografias, imagens televisivas, imaginários virtuais.

Embora se pense geralmente a cultura como produto exclusivo da sensibilidade individual, na verdade, a tecnologia tem um efeito determinante nas formas de expressão criativa. Não só pela constante introdução de novas e revolucionárias ferramentas, pense-se por exemplo no aparecimento da fotografia ou do cinema, mas porque é através do olho tecnológico que o mundo nos é revelado. Hoje, embora persistam abordagens nostálgicas e conservadoras da representação romântica, a paisagem contemporânea é essencialmente mediática. Ou seja, a natureza que nos rodeia já não é composta de árvores e passarinhos, mas de fotografias, imagens televisivas, imaginários virtuais.
Nestes últimos anos o processo de mediatização do real tem sido acelerado com a generalização do computador e, em particular, da Internet. E a sua influência começa a sentir-se na produção cultural, mesmo se a cultura contemporânea se caracteriza por uma lógica de resistência ao novo e forte conservadorismo ideológico.
Na literatura, o conceito de hipertexto promete fazer os maiores estragos. Ainda que a maioria continue a escrever numa única camada narrativa, alguns autores conseguem passar para o livro uma escrita de múltiplos registos, ligações, interacções e sobreposições que caracterizam o designado hipertexto. Um desses poucos autores, entre nós, é o Henrique Garcia Pereira. Professor e investigador do Instituto Superior Técnico tem produzido livros que não se reduzindo à designação corrente de romance ou conto, também não se podem ler como mera divulgação científica. São livros muito inovadores, no conteúdo e na forma, e ao contrário de tanto experimentalismo, bastante atraentes na leitura. «Arte recombinatória» de 2000 e «Apologia do hipertexto» de 2002 (prémio revelação APE), foram as primeiras obras. Agora, com «A matéria de que são feitos os sonhos», Garcia Pereira acrescenta mais uma deambulação em direcção a um novo tipo de literatura, fortemente embebida no universo dos novos saberes da ciência e na Internet, ou seja, no tempo contemporâneo.
O tema é tudo menos politicamente correcto. Trata-se de falar do fumo, do prazer de fumar e de toda uma galáxia de apetrechos, lugares, encenações, vivências em torno desse objecto persistente que é o cigarro. O resultado é uma viagem não-linear pela história do agora malfadado vício, onde a cada página nos deparamos com peripécias, citações, referências, personagens e ideias. E também, muitas imagens, as quais, mais do que simples ilustrações, são peças essenciais numa espécie de nuvem de fumo narrativa de que se faz o livro. Garcia Pereira é exímio a recombinar saberes com vida, teses com impressões, dados com imaginário. Num registo que surpreende. Numa época em que se perseguem e ostracizam os fumadores, seria de esperar um texto moralista em defesa dos resistentes. Mas o livro não faz a apologia do fumo, não defende direitos humanos, não é panfletário. Coloca-se antes num outro plano bastante mais radical e subversivo. O da vida e dos prazeres experimentados. O das cumplicidades, em particular com essa vastíssima multidão de fumadores célebres que, de forma tão marcante e estética, contribuíram para criar a própria imagem da cultura urbana ocidental.
Num único momento Garcia Pereira analisa a questão da polémica sobre o tabagismo. Quando fala das doenças neste mundo moderno recheado de perigos, desinformação e contaminação generalizada. Sendo certo que o tabaco é prejudicial à saúde, não é menos certo que perante a grande poluição, da vida, das terras e dos oceanos, permitida e legitimada pelos estados, não tem qualquer paralelo. Em resultado as pessoas convivem e adaptam-se ao risco. E disso não há melhor imagem do que uma anedota contada no livro. Um homem que vai comprar cigarros recebe um pacote com a tarjeta «Fumar causa impotência sexual». Então virando-se para o empregado diz: «Não tem antes um daqueles que causam o cancro?»
[POR LEONEL MOURA NO JORNAL DE NEGÓCIOS]

A Matéria de que São Feitos os Sonhos, de Henrique Garcia Pereira
• TEOREMA

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