Entrevista com Peter Greenaway (I)

Peter Greenaway, o mais importante realizador inglês da sua geração, não aceita a dependência que o cinema tem do texto.

“As pessoas são visualmente iletradas”


Uma vez afirmou que as origens do cinema estavam na pintura do Renascimento e do Barroco, em Caravaggio, Rembrandt, Rubens, Velazquez... Porque razão pensa assim?
Penso que um historiador convencional do cinema diria que tudo começou com os irmãos Lumière, em 1895, em Paris. Aí teria acontecido a primeira manifestação da prática cinematográfica. Mas eu digo que o cinema tem a ver com a luz artificial e estes quatro pintores foram os primeiros a usar a luz artificial. Outros poderiam dizer que os antigos gregos ou mesmo os chineses, com o seu teatro de sombras, é que foram os primeiros, com a sua manipulação da luz. Eu passei muito tempo a olhar para Rembrandt, fizemos mesmo uma instalação junto da “Ronda Nocturna”, em Amsterdão, agora fiz um filme e escrevi uma peça sobre a obsessão de Rembrandt pelo auto-retrato, chamada “O Espelho de Rembrandt” e actualmente estou a realizar um documentário sobre ele. Para responder à sua pergunta, já que o meu principal interesse não é o cinema mas a pintura, tornou-se numa oportunidade ideal para discutir estes temas. É com um ligeiro sorriso que digo que estes pintores inventaram a linguagem cinematográfica 350 anos antes dos irmãos Lumière.


Mas isso é porque pensa que a narrativa não é o mais importante no cinema.

E não é. Se pedir às pessoas para me contarem a história do “Casablanca” ou do “Homem-Aranha”, não serão capazes de o fazer. Resumiriam em uma ou duas frases, mas não se lembrariam de tudo. As pessoas vão ao cinema por coisas diferentes: pelo ambiente, pela atmosfera, pela representação, enfim por uma experiência audiovisual que tem muito pouco a ver com a narrativa. E, no entanto, o cinema perde uma quantidade enorme de energia, de paciência e de dinheiro a construir narrativas e estas pertencem às livrarias. Temos um cinema baseado no texto e não na imagem. Se chegar ao pé de um produtor com três pinturas, duas litografias e um livro de histórias, nunca vai perceber o que quero dizer e fazer porque as pessoas são visualmente iletradas, estão presas à manifestação textual. Nos últimos dez anos aconteceram o “Harry Potter” e “O Senhor dos Anéis”, que não são filmes, mas livros. Portanto, o cinema está baseado no texto, é também um fenómeno literário. A minha tentativa, uma vez que tenho treino como pintor, é reposicionar esta questão e, devido à revolução tecnológica, estamos num momento em que é possível fazer as imagens mais espantosas e manipulá-las de modo muito livre. Logo, o que preciso de fazer é desvalorizar a presença do texto, desvalorizar a evidência da livraria e tentar fazer um cinema verdadeiramente autónomo. André Bazin, em 1923, disse que o cinema é composto por teatro, literatura e pintura. Nós ignoramos a pintura e, cem anos depois, ainda está dependente da literatura e do teatro. Acho que podíamos ter algo de muito mais vibrante. Claro, agora é demasiado tarde: o cinema está morto.


Eu ia aí chegar (esta é uma das suas afirmações mais conhecidas e polémicas). Mas antes de mais: os seus filmes utilizam muito texto e mais: sinto que o texto e as suas capacidades literárias estão muito presentes nos seus filmes.
Bem... Não sei se viu este último.

Não. Aqui, a esse respeito, estamos numa espécie de fim do mundo. Raramente cá chega cinema europeu. Temos de esperar pelo DVD.

E se estivesse em Lisboa?


É diferente, temos outro tipo de acesso ao que vai acontecendo na Europa, em termos artísticos.

Quantas pessoas falam português em Macau?


Cerca de quinze mil.

Imensa gente fala português no mundo, sobretudo se considerarmos o Brasil. Estive lá agora a organizar uma exposição e para o ano volto para realizar “Pornography”.


O que quer dizer com isso de “Pornography”?

Preciso de fazer uma peça extrema de erotismo. O que vou fazer é pegar em seis histórias eróticas da Bíblia e dramatizá-las. Abre com a primeira queca (fuck) da história da humanidade, com o Diabo a ensinar Adão e Eva a fazerem amor (how to fuck); depois vem o incesto com Lot e as filhas; a terceira é a santificação do adultério, com David e Batseba; a quarta sobre a sedutora de José, portanto sobre a sedução dos inocentes; depois vem Sansão e Dalila, a história clássica sobre a perfídia das mulheres; e na última saltamos para o Novo Testamento, para a história de João Baptista e Salomé, que é na realidade sobre necrofilia. Na verdade, são seis histórias sobre políticas sexuais. O que me interessa é a relação entre a religião e a sexualidade. Todas as religiões têm grandes problemas com a sexualidade e isto é sobre como no Antigo Testamento os judeus lidaram com o assunto, bem como nos princípios da cristandade.


Porquê o Brasil?

Principalmente, porque nos ofereceram três estúdios. Talvez saiba que há um “boom” no cinema brasileiro e queremos capitalizar nisso. E, por outro lado, gosto de argumentar que o Brasil é um país católico romano, mas também o país do Carnaval, portanto talvez aí sinta uma experiência sexo-religiosa.


Quando diz que o cinema está morto, parece referir-se mais ao aspecto sociológico, menos ao lado criativo.

Também é um problema de criatividade. Todos sabemos que, em termos de hábitos sociais, há tantas coisas para fazer no mundo que o cinema — que era uma forma barata de entreter o proletariado, uma perspectiva que se finou —, está na acabado. Prevalece o filme de género, que basta ver cinco minutos para sabermos o que vai acontecer a seguir. Visto por dentro, julgo existirem quatro tiranias que destruíram o cinema: a tirania do texto; a tirania do enquadramento (frame), porque não existe uma moldura na Natureza, enquanto nós estamos totalmente sujeitos e cercados por elas – eis uma ali (aponta para uma televisão), temos de as partir e estão a ser partidas de uma série de maneiras; depois, a mais difícil, a tirania do actor, que são muito mal utilizados no cinema, que não é o recreio da Sharon Stone – a culpa não é dela mas do modo como usamos os actores; e a tirania pior de todas, a tirania da câmara, da qual temos de nos livrar.


Isso é muito estranho...

E até parece contraditório. Mas se pensarmos em Eisenstein, o maior cineasta de sempre, e em Picasso, o maior pintor do século XX, percebemos. Picasso disse: pinto o que penso, não o que vejo. Eisenstein, quando ia a caminho do México, parou na Califórnia e encontrou-se com Walt Disney. Ele dizia que Disney era o único verdadeiro cineasta. Não se estava a referir ao sentimentalismo ou ao seu anti-semitismo, mas porque ele representava a indústria de animação e esta começa por uma folha branca, não há câmara, há vazio, há criatividade desde o princípio. O que a câmara faz é reproduzir o que é posto à sua frente e isso para mim é imitação, é mimésis, não é criatividade. Com as novas tecnologias, parece existir outra vez o conceito de criar em vez de reproduzir, uma noção nova de cinema, que começa do fundo. Temos de encontrar um novo vocabulário. Todos os media precisam de ser sempre reinventados, senão ainda estaríamos sempre a ouvir Mozart e a admirar as pinturas das cavernas. Agora temos à nossa disposição ferramentas extraordinárias e os artistas devem sempre utilizar as ferramentas do seu tempo. É importante para mim, como fazedor de imagens de cinema, utilizar as ferramentas actuais e, sobretudo, a filosofia que as acompanha.


É para escapar a essas tiranias que invoca no seu trabalho disciplinas como a arquitectura, por exemplo?

Sim. Tentei desenvolver noções de obra de arte total. A ópera foi bem sucedida porque Wagner não nos estava a dizer a verdade: só queria que todas as artes apoiassem a ópera. À medida que as ferramentas se vão sofisticando, as capacidades para realizar uma obra de arte total vão sendo cada vez mais profundas, mas agora no século XXI temos de acrescentar a interactividade e os multimédia. O cinema não tem essa interactividade porque é um fenómeno de massas não pode ser democrático. Com tanta gente que o vê, não pode interagir com todos. As experiências que procuraram um cinema igualitário e interactivo não tiveram sucesso.

[POR CARLOS MORAIS JOSÉ • JORNAL HOJE MACAU • 4 ABR 2008][PHOTO © BLOOMLAND.CN]

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