Quanto o escuro intoxica

Jamais uma noite me pareceu tão real, tão elementar [...]. Quando vi La Notte, tive pela primeira vez uma espécie de sentimento do mundo, para lá de todos os sentimentos individuais. [...] É como se, como mero espectador, eu tivesse merecido o mundo (algo que eu só tinha conseguido sentir até então com um certo trabalho). E o mundo, sem qualquer imprevisto nocturno, estava lá, como um evento [...]
Assim descreve Peter Handke a primeira vez em que assistiu – em 1962 – ao filme "A Noite", de Antonioni, filme protagonizado por Jeanne Moreau, com quem o jovem escritor austríaco recém-estabelecido em Paris viria a ter um caso, na década de 70.
É por entre a noite que se desenrola o romance de Handke, que aqui destacamos, do autor em língua alemã com uma vasta obra literária, que se desdobra na ficção, no ensaio, na poesia, no cinema, de entre os quais como argumentista do filme "Asas do Desejo" de Wim Wenders.
Ficou também marcado no seu reportório biográfico a ido ao funeral de Slobodan Milosevic, antigo prsidente Sérvio, numa atitude de protesto contra a enorme manipulação que o mundo ocidental construiu contra a Jugoslávia, da Bósnia ao Kosovo. Feito que o trouxe para os escaparates dos jornais com uma controvérsia neo-fascista mas que apenas pretendeu mostrar a quem esteja distraído que o "Império" está pronto a castigar os seus dissidentes e críticos onde quer que eles se encontrem e qualquer que seja o seu estatuto. Como exemplar é a subserviência e a cobardia de muitos intelectuais aos ditames do "Império", mesmo quando parecem saltar fora dos seus carris.
'Numa Noite Escura Saí da Minha Casa Silenciosa' é uma história misteriosa, onde o real e o imaginário se cruzam. Num dia de chuva e sem motivo aparente, o farmacêutico de Taxham, nos arredores de Salzburgo, empreende uma longa viagem em direcção ao imprevisto e à aventura, desde a Áustria até à Andaluzia. Parte com dois companheiros ocasionais, mas regressa sozinho e sereno, depois de um percurso aparentemente arbitrário.
Peter Handke aproveita os versos do poeta espanhol San Juan de la Cruz, que dão origem ao título deste romance, para nos levar numa viagem ao desconhecido. Um périplo aos medos, fantasmas e solidões que assombram os homens, numa narrativa entre o mágico e o real.
Uma viagem, afinal, ao interior de nós próprios, característica da obra de Peter Handke, um dos mais perspicazes e provocadores escritores contemporâneos.
Um romance que perturba. Porque associa realismo e onirismo até à vertigem, como um filme de Buñuel revisitado por Wim Wenders. Porque não pára de baralhar as pistas, na linha de uma demanda iniciática, no fim da qual não cintila nenhuma grande descoberta.. Perturbador porque, face a esta história sonâmbula, se confessa um herói sem nome.Um aspecto interessante na carreira de Handke enquanto narrador é que não se repete. Os seus escritos parecem avançar em direcção a um lugar oculto, talvez inexistente, o terreno pantanoso do inefável.
E como no filme de Antonioni o sentimento do mundo perde-se no limiar da noite, para lá da luz, para lá dos outros, apenas como o seu imprevisto recriando-se como um evento dramático e silencioso. Um livro a não perder, disponível na Bloom.

Numa Noite Escura Saí da Minha Casa Silenciosa, de Peter Handke • CASA DAS LETRAS

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