O Fadista

É preciso começar por qualquer lado, o princípio, não importa muito como são as primeiras letras, o que dizem as frases iniciais. Como aparecem. O som delas. Depois o eco. E por fim o declive da sua memória.
Espantoso. Achava que já tinha passado aquele limite de idade em que já não fazia figuras como esta. Não, não é vergonha. Só o invisível empenho que demarca a nossa conduta e nos mantém aptos junto aos restantes. O Mundo. De certo modo, e mesmo com todo o meu passado, de pessoa respeitável, o que já é um feito a ter em conta, nem eu estava à espera de me comportar desta maneira. Mas aqui estou. Não consegui fugir ao inevitável. Já me tinham avisado. Por muitas vezes tinha observado o comportamento dos outros em idênticas circunstâncias. Até me tinha rido com isso e ter achado que era, sem sombra de dúvida, bastante ridículo. Agora não há muito a dizer. Nem mais nada para explicar. Aconteceu. Isso é tudo o que conta.
E como foram as primeiras frases desta minha nova vida? Nem sei. Foi como se estivesse há muito a olhar para a mesma imagem, lá ao longe, remota, desfocada, uma coisa muito minha, que a pouco e pouco se foi tornando mais nítida, a ganhar os seus contornos e a receber as suas cores, de sombras profundas. A tornar-se mais perceptível. Para no final perceber do que se tratava e reconhecer a sua forma por completo, compreendendo acima de tudo que ela me tinha acompanhado a vida inteira, e que não era mais do que a configuração absoluta do meu carácter às voltas dentro de mim. Só que até ali, todo o tempo em que a ignorei, não tinha tido capacidade para a decifrar, porque não tinha aprendido a viver. Assim. E quando isso aconteceu já era tarde demais. Já nada tinha o seu valor. Se isto é que é viver? Não quero ter uma resposta. A partir daí nem por sombras queria voltar para trás. Nunca mais. Estava a desenhar uma nova forma de escrita com uma compostura rara e desconhecida. Letras.
E já vamos longe na introdução, já passámos disso. A esta altura já estou muito mais à frente. O Era uma vez já aconteceu muitas vezes.
Foi num dia, num ciclo de cinema, eu estava ali quieto, como em todos os filmes, as mãos entrelaçadas em cima do colo, no escuro, numa das filas da frente. A sala quase cheia. O aborrecimento, lembro-me, legendava o que estava a ver, que até ali não trazia nada de extraordinário. Quando ele entrou, vindo devagarinho, passo a passo, e se pôs a cantar.

Foi um arrepio a primeira frase. Pensei que fosse do frio, do ar-condicionado, da escuridão súbita. Mas ele continuou e eu não quis acreditar. Comecei a sentir-me esmagado, numa paródia de pleno êxtase. Ele a andar, com o sol a rebentar a um fio de nascer e ainda no fim da noite, com o nó da gravata fugido da garganta, o som das cordas na voz da guitarra, tivesse continuado sem mais esperança até ao dia seguinte. Ele, sim. Pensei que tudo aquilo era saudade. Essa palavra que não colabora. Saudade do mar. Saudade a navegar na memória da cidade que me encantava. O amor por uma vida remota e desfocada, funda de sombras, que retomava ali os seus divinos contornos e encantos. Visível. Toda ela óbvia. A apertar-me contra a cadeira. Contra a minha estranha forma de vida.
E fiquei, sentando, as mãos em alvoroço, o olhar fixo naquela representação da realidade, e nas outras que se iam seguindo. Pequenino, ali, sem o conseguir encarar de frente. E a projecção do meu inevitável destino a tornar toda a minha existência perceptível. Não foi de todo medo o que senti. Apenas a exuberância de estar vivo.
Que tempos esses de puro alerta, sem horas, sem dias. Apenas o pó de frases bonitas a apertar com um nó todo o meu ser. A música. O canto. Tabefes, murros, desastres. Mas ao contrário. Sim, com as mesmas letras, mas do avesso.
Não conto o que fiz depois. Que foi tanto. É, se me tivessem explicado antes, diria, que depois dos quarenta já ia muito atrasado, para abraçar toda aquela adolescência por viver. Mas isto não tem idade. Não tem outro feitio. É alegria pura. Sempre, sempre que quiser.
Sim, tem piada só de pensar. Dá-me uma imensa vontade de rir. E isso não é bom? Não é um feito considerável? Correr atrás dele feito o maior dos palermas. Decidido. E segui-lo, para aqui e para ali, país fora. Aos gritos pela estrada, como aquelas meninocas das novelas. Cidades, vilas, aldeias. Quero lá saber. Digo quantas asneiras forem preciso. Isso faz bem. Ajuda. Faço trinta por uma linha, mas eu vou, de dentes cerrados, e amo o azul, o púrpura e o amarelo que moldam toda essa vida. Estou lá! Pouco me interessa, como já me disseram tantas vezes, que me achem, sem sombra de dúvida, bastante ridículo. A verdade é tão simples.

Fico quietinho, num lugar qualquer nas três filas da frente, e sinto. Fecho os olhos. Deliro um pouco. E é uma certa maneira de sofrer. Hmmmmm. Os arrepios de novo. Alguém consegue perceber isto? Saio fora de mim, mas ao mesmo tempo entro, por que aquilo, foi o que me contaram quando era criança, é que é o Paraíso. E eu acredito nisso. Não é uma questão religiosa. Eu sou completamente incrédulo perante essas coisas que fazem as guerras no mundo. Não ligo nem um segundo a essas histórias. E no entanto... sigo-o. Mas ele, posso dizer, é uma pessoa de carne e osso. Não é nenhuma relíquia do passado. Nenhum fantasma. Não lhe inventaram uma cruz nem uns parafusos. Ou um Black & Decker.
E agora estou aqui em cima desta árvore, no meio dos pássaros, a olhar para o palácio, que nem um burro, à espera que ele saia. Formidável. Estão cá mais. Mais mulheres do que homens, como sempre. Mas não importa. Por meu desejo basta que ele se vislumbre. Chega vê-lo de raspão. Eu que não o consigo encarar de frente. Para mim, se alguém quiser saber, esta coisa, é um amor que eu não sei explicar. Facilmente o coração me salta para as mãos, assim, alvoraçado, e fica aqui entrelaçado no colo. Não está escuro, está um sol imenso. Céu azul e tudo, gaivotas pelo ar. Muitas. Vieram também com certeza. Que figura a minha, a minha família diz o mesmo. Tão bom! Não conheço mais nada assim. Acreditem, eu nem gostava disto. Facilmente solto as lágrimas que me apetecer. E isso não é saudade, é saúde. Muita. Choro, sem ninguém dar por isso, assim que ele abre os lábios. E solta do nó da garganta a guitarra toda dobrada dentro da voz. Mas é uma coisa muito íntima, muito minha e dele. Só nossa. Só eu é que noto.
Mas é em absoluto a vida toda a voltar atrás e sou eu a voltar a vivê-la. E para isso, o fim, escreve-se com qualquer letra. O que importa, no final de tudo, são apenas os ecos da memória. Este precipício, que aqui fica.
[As Marquesas • PUBLICADO SEMANALMENTE NO HOJE MACAU E AQUI AOS DOMINGOS • #1 DE 11 ABR 2008]

5 Comments:

  1. Anonymous said...
    Frases bonitas. Um pouco confuso de início e circular mas compreensível quando se chega a meio e se percebe a que aludem essas referências e o facto de elas não estarem "perceptíveis" de início.
    Ring tem uma cadência peculiar, mas bastante fluída, tanto na pontuação como no estilo, não se agarra à primeira, é necessária uma constante releitura. Plena na criação de imagens.
    Bem "entrelaçadas" as referências ao Fado e às suas letras. Como o Fado da Saudade, a Vida Vivida, bem com a "estranha forma de vida" de Amália.
    Muito original o texto, dou os meus parabéns a este escritor, que não faço a minima ideia quem seja. Parabéns à Bloom por o reter neste espaço e por o ter feito chegar aos jornais, onde me foi dado esse prazer da leitura. Uma lufada de ar fresco em Macau.
    Fantástica a pequena pincelada pela Religião e a cruz de Cristo, aparafusada com um Black & Decker à sociedade deturpada em que vivemos.
    Resta-me dizer ainda da versão melhorada aqui em relação à do jornal, onde foram corrigidas algumas das gralhas. Na verdade um texto está sempre a ser reescrito. Por nós ou pelo autor.
    Espero mais para a semana. Um abraço ao "Ring Joid".
    Anonymous said...
    Também gostei muito! Um beijinho.
    Bloom * Creative Network said...
    Pela parte que nos toca, a Bloom agradece. Obrigado!
    Anonymous said...
    Li e não sei bem o que pensar. Não sei se gosto se não. Sei que não é mau, talvez seja a única certeza que tenha. "Mas será mesmo bom?", ponho-me a perguntar. Talvez mais tarde possa tecer uma opinião. Pergunto-me também, "Que é isto afinal?"
    Gosto da composição das palavras, e o eco, sim, fica um eco. Gosto muito da imagem, que dá para ver um pouco maior noutro texto em baixo.
    Luísa Ramos / Roma
    Anonymous said...
    Caro Ring,
    welcome back! Eu sei que tu sabes quem sou...vou, para já ficar anónimo. Ainda assim, grande abraço e obrigado por regressares. As tuas emoções são shakers de conscência, e ainda que concordando com um post anterior - ou talvez por causa disso mesmo - não é evidente escorrer logo à partida pela tua escrita, mas quando se abre a porta entra-se num mundo espantoso: sabe-me bem ler-te, chamas-me a atenção para uma série de aspectos que estão adormecidos na minha conscência, é muito, muito refrescante e educativo. Um grande exercício! Vai amigo, contínua com esses 'tomates' todos (desculpem os mais sensíveis ao cuidado que se deve ter com a língua) para seres na escrita aquilo que és como homem: um Ganda Pai, um bom amigo, uma pessoa que gosta de dar e receber.
    Aquele abraço e toda a força do mundo. Heil to the Ring, it's a Joy to read you my friend. Às sextas-feiras passas a ser tu a abrir-me a pestana e a mastigar-me o sentimento!

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