Coelhinhos

É, ontem foi dia de Harold Pinter, não sei bem porquê. Na verdade, dia de Harold Pinter é todos os dias. Ou devia ser. Pelo menos enquanto ele, e nós, estivermos vivos. Hoje continua. Mais um dia. Nós e ele. Aqui vai. É um excerto de um livro que cá temos. Fala de teatro. E ao falar de teatro, fala da vida toda. Tenham um bom dia de Páscoa.

Perguntam-me muitas vezes como nascem as minhas peças. Não sei dizer. Nem sou capaz de resumir nenhuma das minhas peças, só sei dizer: foi isto o que aconteceu. Foi isto que disseram. Foi isto o que fizeram.
A maioria das peças nasce de uma frase, uma palavra ou uma imagem. À palavra junta-se quase de seguida uma imagem. Vou dar dois exemplos de duas frases que me vieram à cabeça de forma inesperada e a que logo se seguiu uma imagem, que eu depois segui. As peças são O Regresso a Casa e Há Tanto Tempo. A primeira frase de O Regresso a Casa é: “O que é que fizeste à tesoura?”. A primeira frase de Há Tanto Tempo é “Escuro”.
Em qualquer dos casos, eu não tinha mais informações.
No primeiro, era evidente que alguém estava à procura de uma tesoura e perguntava pelo seu paradeiro a outra pessoa, de quem suspeitava tê-la roubado. Mas eu sabia, de alguma maneira, que a pessoa a quem a pergunta era feita se estava nas tintas para a tesoura e até mesmo para quem lhe fazia a pergunta.
«Escuro» achei que era a descrição do cabelo de alguém, o cabelo de uma mulher, e era a resposta a alguma pergunta. Em qualquer dos casos, senti-me obrigado a prosseguir. Isto passou-se visualmente, numa gradação muito lenta, da sombra para a luz.
Quando começo uma peça, chamo sempre A, B ou C às minhas personagens.
Na peça que viria a ser O Regresso a Casa, vi um homem entrar numa sala despojada e fazer uma pergunta a outro homem mais novo que estaria sentado num feio sofá a ler um jornal de apostas de cavalos. Tinha a ideia que A seria um pai e B seu filho, mas não tinha qualquer prova. Isso, no entanto, seria confirmado daí a nada quando B (que viria a ser Lenny) diz a A (que viria a ser Max), «Pai, importas-te que eu mude de assunto? Queria fazer-te uma pergunta. O que comemos ao jantar, como é que se chamava? Que nome é que dás àquilo? Porque é que não compras um cão? És um cozinheiro de cães. A sério. Achas que estás a cozinhar para a matilha de cães.» Ou seja, a partir do momento em que B chama «Pai» a A, pareceu-me aceitável que fossem pai e filho. Claramente, A é também o cozinheiro e a sua arte não parecia ser muito apreciada. Quereria isto dizer que não havia mãe? Não sabia. Mas, como disse para comigo na altura, os nossos princípios não sabem como serão os nossos desenlaces.
HAROLD PINTER
[Discurso de aceitação do Prémio Nobel • Várias Vozes • 2006 • Edições Quasi]

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