O jornalista e escritor catalão Enrique Vila-Matas surpreende-nos com um conjunto de crónicas urbanas «Da Cidade Nervosa» referentes à sua cidade, Barcelona. Tendendo a fixar-se sempre «no mais estranho», como o próprio assume, o autor constrói verdadeiras narrativas, curtas e certeiras, onde o lugar comum é de todo banido.
Com especial dedicação pelo «romance da rua», Vila-Matas define o método para atingir o objectivo: viajar «sem destino marcado», partir sem se «dirigir a parte nenhuma», na «intenção de espiar condutas humanas e apanhar dissimuladamente conversas de desconhecidos». Como diz António Tabucchi, e recordado e comprovado por Vila-Matas, «todos os escritores são um pouco voyeurs, todos espiam um pouco a vida pelo buraco da fechadura. A vida é demasiado breve para se viver o número suficiente de experiências: é preciso roubá-las».
Com o título sugestionado das cidades das “epilépticas civilizações”, de Robert Arlt, Vila-Matas, que assume ser o que a cidade fez dele, edifica com ironia, encanto, mas também azedume, o nervosismo de Barcelona, cidade dos «prodígios de tanto desenhador barato», «muito activa, muito dinâmica, mas enormemente mutante», «a Madame Bovary das cidades deste mundo […] onde nada dura, nem o que é mais recente».
E o verbo insaciável e indomável corre pelas 282 páginas, divididas por quatro secções: a abrir coligem-se crónicas que atestam o olhar arguto e o vigor intelectual do autor; segue-se o texto original, e mais extenso, «Mastroianni-sur-Mer» onde se entrelaça a literatura e o cinema; a terceira parte desenrola «Um tapete que se espalha em muitas direcções» e, surpreendentemente, explanam-se as vicissitudes e a tessitura da construção literária; a fechar, em «Escritos Shandys», o autor reuniu alguns dos artigos e ensaios literários publicados quer na imprensa nacional espanhola quer estrangeira.
Fiel ao apelo da escrita, que domina com mestria, Vila-Matas retrata lugares, pessoas, vozes, sensações, «com o objectivo descritivo que tende ao infinito e portanto a todas as luzes impossível». O grito criador não se detém mesmo que falte assunto, porquanto há assunto no «que se passa quando não se passa nada, só tempo, as pessoas, os carros as nuvens». Assim, feito detective numa viagem ao centro da terra - «como no cinema ou teatro, é sempre de noite» - desce ao metro de Barcelona, «esse mundo congelado, sem céu, nem plantas, nem animais (excepto ratazanas), movido pelo chamariz do boato de que nem toda a gente que lá desce volta à superfície»; viaja nos transportes públicos, perseguindo vidas alheias para constatar que neles «só as mulheres lêem, os homens fazem palavras cruzadas ou esgravatam o nariz»; arremete contra o campo e contra a praia das férias de Agosto; fixa-se enérgico e hilariante no "drama escultórico" de Barcelona. Para todo o lado, praças, becos esconsos, memórias, linha a linha, página a página, o autor leva consigo o leitor, como um íman, exultante por se sentir prisioneiro no olhar singular do barcelonês.
[FONTE: REVISTA KAMINHOS]
Da Cidade Nervosa, de Enrique Vila-Matas • CAMPO DAS LETRAS
[DISPONÍVEL NA BLOOM]
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