[1] És Sempre Assim
A setecentos pés de altitude, merda, seiscentos pés. As asas em chamas, o piloto automático a ejectar-se com o único páraquedas. O vento a entrar pelas frinchas da despressurização. Quinhentos pés, agarro-me aos comandos com todas as dores que tenho. Puxo. Puxo. Não mexe. Não vira. Não gane. Puxo. Os pés a fingir que estão nuns travões imaginários que abrandam quedas. O vazio. Fumo negro a coçar a carlinga. Faíscas por todo o lado. Quatrocentos pés. As mãos. As minhas mãos que seguram o braço do joystick que de repente se desprende do resto do cockpit, que me vomita um enjoo de fios no colo. Nada. Trezentos pés. O chão a um palmo do nariz. Chego as mãos ao cabelo não vá ficar mal quando os meus dentes tocarem os estilhaços do vidro do avião. E a explosão. Será que explode? Queda a pique. Queda com o fim à vista. Duzentos. Cento e noventa e nove. Cento e noventa e oitro. Cento e noventa e sete. Porra. Não fui feito para morrer assim. O que há a fazer? Rosnar? Transformar-me em folha? Desaparecer? Cento e cinquenta. As minhas unhas a afagar o resto do meu corpo. Não grito, não falo. Não me mexo. Abro os olhos que se arregalam com os cem pés de altitude. Oh. Noventa e nove. Ah. Noventa e tal. Quantos mais que me pisam. Noventa? Oitenta? A minha vida toda a passar-me à frente e ainda não bati em nada. O espaço. É isto o espaço. É isto estar no sítio errado à hora errada. É isto um beco sem saída. Cinquenta. Não quero saber. Acabou-se. Será que explode? E me fura os tímpanos? Oh. Trinta mãos de atitude. É agora ou nunca a altura de desaparecer. A folha. Vinte dedos. Dezanove. Dezoito. Todos eles a saltarem-me dos membros. Um a um. O pé esquerdo primeiro, já se foi. O outro logo no que pareceu ser o mesmo instante. E agora um calor. Um uivar. Um rasgão a acolher-me o peito. Dez, nove, oito. E o paraíso celeste. O estrondo. O carbono a entrar-me pela goela. A comer-me o esófago e as paredes do estômago. Ainda sinto o coração que se despedaça. Ainda vejo o meu céu. Ainda sinto um útlimo desejo. Ainda estou vivo no último momento. E de seguida...
Nada.
[2] Céu Limpo
Encontrei-te no cimo das escadas. Ficámos ali os dois, a olhar-nos. Parecíamos dois cães que se cheiram por curiosidade, um pouco cegos. Não me lembro quem deu o primeiro passo, acho que foi em simultâneo. E no desespero de um desejo sem fim matamo-nos um ao outro, à queima roupa. Os jornais no outro dia falavam em duplo suicídio. Eu cá tenho as minhas dúvidas. Morremos apenas um pelo outro. O outro que éramos nós.
Bookmarkers: Buenos Aires, Português, Ring Joid
6 Comments:
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- teresa said...
19 March, 2008 09:37ring estás tão sanguinário.- Frances said...
19 March, 2008 10:10ring, ao escreveres na linha de arrebentação, por magia as tuas palavras transformam-se em espuma de mar.- teresa said...
19 March, 2008 14:46Espuma mortífera ;-p- Frances said...
19 March, 2008 16:02eheheheh. eu ate fico com medo!!- Anonymous said...
19 March, 2008 16:43Eu cá não vejo sangue nenhum! Mas gosto sim. Gosto das imagens que se criam. A verdade, é que ficam connosco. Pode mesmo ser que hoje até sonhe com elas.- Anonymous said...
19 March, 2008 17:41Pois, não tem sangue. Assim não tem graça. :-p