Agarrado à memória

Este é um livro lindo que vem de dentro da Terra, de dentro do País e da mão do Homem.
"Os Comeres dos Ganhões - Memória de Outros Sabores", por Aníbal Falcato Alves, da Campo das Letras, é um saboroso inventário da comida dos criados de lavoura ou mondadores dos campos alentejanos, e que constitui um repositório indispensável para conhecer a comida dos trabalhadores agrícolas em tempos de penúria. É a comida de quem trabalha a terra em condições sempre adversas e, para resistir, recorre à imaginação usando as ervas, as plantas, a batata, o pão e as gorduras e proteínas em escassa quantidade.

A comida dos ganhões tem por isso agriões, acelgas, beldroegas, oregãos ou poejos. Preparam açordas de coentros ou poejos e se há mais recursos põem uns fios de bacalhau, sardinhas ou ovos.

Não há dinheiro para a carne, e por isso se usam as miudezas como abona a cachola. E quem quiser inteirar-se destas relíquias da mesa, destes produtos étnicos em vias de recuperação, leia como se faz um cozido, um ensopado, os gaspachos, as sopas que tanto podem levar fava, como cebola, como espargos ou pés de porco.

Se o leitor quer ir mais longe, fica a saber que há petiscos, desde que possa utilizar um pouco de bacalhau, pimentões verdes, tomate maduro, e um pouco de azeite, vinagre e sal.

O autor enriquece a edição com depoimentos de operários agrícolas que confirmam as migas, os ensopados e o uso de feijões e batata. Como nos esclarece o Sr. Travassos, de Sta Maria, Estremoz: “Para as migas gatas, a gente esfatiava um bocado de pão dentro de uma tigela, migava-lhe um dentinho de alho em cima, umas pedrinhas de sal, depois deitava-se água quente em cima, abafava-se com outra tigela, e ali ficava a abrandecer as sopas que se embebiam naquela água.

Então, deitava-se a tal pinguinha de azeite-que aquilo era para aí um dedal de azeite - mais um pouco de vinagre, e pronto, estava feito.” Parece que a provação aguça o engenho, nos espíritos e nos estômagos. Quem nada possui para comer, luta e aduba com os aromas e sabores os poucos alimentos disponíveis.

O resultado pode ser um milagre. É o caso desta cozinha dos ganhões. A palavra "ganhão" deriva do árabe "al-gannam" e chegou até nós através do castelhano "gañan" com o significado de pastor. Nesta presente edição, uma iniciativa conjunta da Campo das Letras e da Câmara Municipal de Estremoz, procurou-se conjugar matéria de edições anteriores, mantendo, lado a lado, os dados de natureza social e a confecção de receitas culinárias, num volume que, condensando o essencial das matérias já publicadas, tivesse uma dimensão mais apelativa ao seu manuseamento.

Devíamos ter encomendado 10 livros destes mas só temos um. Virão mais em breve. Que chegue o primeiro interessado e o leve consigo, pelo caminho não se esqueça de, com a mão de fora do carro, apanhar as ervas que brotam da Terra.
É verdade, aqui em Macau, só brota betão mal armado.

Os Comeres dos Ganhões - Memória de Outros Sabores, de Aníbal Falcato Alves
CAMPO DAS LETRAS

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