Nas luas de outro planeta

ESTE É O XX CAPÍTULO DO "ÚLTIMO HOMEM EM SATURNO"
JÁ FEITO: S. perdeu o fio que o ligava ao mundo. Ao príncipio era uma história de principes e princesas. De fadas. De detectives e ladrões. Era o James Bond e o Silvester, o gato. Eram filmes que passavam em movimento e que embriagava toda a população mundial. Mas depois o rumo perdeu-se. As imagens foram proibidas e todas as pessoas vivem agora na ressaca desse passado. Daqui para a frente tudo pode acontecer. As paredes tornaram-se mais apertadas e o rato não consegue desviar-se da boca do seu predador.

XX. Código servil desbotado

A minha relação com a cidade é uma coisa dúbia. Não nos sentimos bem um com o outro. Toleramo-nos mutuamente e nem sempre da melhor maneira. Ela no fundo odeia-me, tenho a certeza disso. E eu perco-me demasiadas vezes no corrupio que a envolve.
Andei anos a acordar assim, na dúvida de que lá fora poderia existir uma vida melhor. Longe do alcance dos prédios, fora do meio urbano. Chegava ao espelho de manhã e assombravam-me as questões do dia que ia decorrer. Saber que tinha todo o meu espaço delimitado, toda a minha sabedoria dentro de uma caixa de plástico ou no rebordo de um semáforo para peões. Verde, vermelho. Pare, olhe. Verde, vermelho. Todo o meu gosto formatado nas sobras de uma ementa que já conhecia de trás para a frente.
Verde e vermelho.
Na cidade está tudo à mão, tudo ao virar de uma curva ou dentro de um saco. É uma vida fácil. Faz-se dinheiro e gasta-se logo de seguida com o mesmo ímpeto e velocidade. E se não se tem nenhum meio de subsistência há sempre alguém que passa e que o arranja. Pede-se, dá-se. Compra-se, vende-se. Isto cansa-me tanto que não consigo nem sequer pensar nisso. Numa cidade, só de olhar para elas, chego a conhecer todas as pessoas que a habitam. E a reconhecê-las de novo sempre que passam por mim. Com os seus sobrolhos alinhados, o seu passo certo, os seus dias contados. Que se compram e depois se vendem.

Pertence agora ao passado a minha relação com a cidade.
Não demoro muito a chegar à conclusão que o único lugar que necessito verdadeiramente dentro de uma terra assim é uma casa. A minha. Nada mais. Toda a minha vida se desenvolve a partir daí. Entre paredes. As minhas ligações com os outros, o meu trabalho, o meu alimento. Viver entrelaçado numa teia de betão armado corta-me o desejo de lutar por algo melhor. Mesmo a fonte de informação e de entretenimento que nutrem os cantos de uma urbe me fazem mudar de opinião. Por vezes chegam-me vontades de derrubar as cidades todas e deixar as pessoas à solta, à vista uns dos outros. Viajar todos os dias com elas em elevadores é que não é de todo o meu prato favorito.
E por isso tudo mudei. Mudei de vida.
Andava com esta ideia em mim ainda antes das grandes proibições terem chegado. Muito antes das fogueiras. Da limpeza do audiovisual e do seu extermínio em massa. Vivia uma vida anómala, sem sabor. Mesmo dentro da felicidade que era o estar pregado em frente a uma televisão, ou ir ao cinema, e observar as minhas veias em choque com o prazer recebido pelas imagens em movimento, pressentia as falhas que circulavam em todo o meu ser e em que toda a minha vida se baseava. Existiam vozes recorrentes dentro de mim que se revoltavam com o espaço que me envolvia. Que gritavam.
E agora mudei.
Mudei. Mudei para o deserto.
Vim aos poucos.
Primeiro viajei até cá. Peguei no carro e entrei pela planície sem fim com as rotações no máximo a atingir o som da minha velocidade que explodia em melodias de alegria. Senti-me imenso. Assim sem fim e sem limites. E quando dei por mim estava a viajar para além desse infinito, para lá do que existia à minha volta, para lá de todas as minhas convulsões e da minha nascença. No deserto não há mundo. Não há nada. E por isso há tudo. Existe um universo sem fim que sobra e que se entope em cada um dos poros de uma pessoa.
Na cidade onde vivia anteriormente, perto de mim, do lugar onde habitava e que nunca consegui dar o nome de lar, havia um Parque de Diversões. Uma estrutura gigantesca que a pouco e pouco foi perdendo a actualidade e a fama. No seu coração uma imponente Montanha Russa que era das poucas coisas que me fascinavam naquela terra. Quando decidi mudar de ares todo o espaço estava já votado ao abandono e o que restava era apenas o corpo sereno do aço que se espantava com ferrugem sempre que o sol e a chuva lhe batiam. Não sei quando foi, se foi antes ou depois da minha decisão, mas a verdade é que tinha descoberto a minha casa ideal e na segunda viagem para o deserto parte dela já me acompanhava.
Montei-a com uma voracidade invulgar, peça a peça, mais ou menos como me dava na ânsia. Desaparafusava de um lado e quatrocentos quilómetros a Norte voltava a ligar tudo da maneira que achava melhor. Da maneira mais bela. Não sei quantas viagens fiz e quanto tempo demorei. Mas quando finalmente me instalei tudo isso tinha deixado de ser importante.
E foi aqui que passei a viver. Sozinho. No cimo ou no colo de uma Montanha Russa, que é finalmente o meu Lar.
A história que quero contar não é essa. É capaz de ser ainda mais invulgar, mas era preciso chegar até aqui. Explicar o meu desapontamento com a cidade e a posterior descoberta da minha autonomia no deserto.
No meu espírito há muito que as memórias dos filmes se apagaram. Foram com a areia que faz nascer nas minhas janelas de aço as tempestades deste mar sem fim. No movimento dos carris desta montanha crio as ondas de todas as minhas novas imagens. O resto aqui não existe. O resto é o todo. E o todo sou eu.
Era assim mas deixou de ser, porque já não estou bem sozinho.
Há pouco mais de duas semanas comecei a observar no fundo do horizonte um ponto negro. De dia para dia, tímido, foi crescendo, trazendo a sua impureza para mais perto. Pensei que ia ter companhia, que a cidade tinha sentido a minha falta e que no seu passo lento, na sua expansão devastadora, me vinha comer e levar o meu abrigo. Mas ao quinto dia consegui distingui-lo. Não era mais do que um veículo. Uma velha carrinha de caixa aberta que aos círculos vinha ter comigo, a rondar-me como um pequeno tornado. Observava-me. De dia. Sentia-lhe o cheiro, o rubro dos pneus a chiar com medo dos travões. De noite perdia-se na escuridão.
Uma manhã, com o céu cheio de nuvens, vi sair do seu interior um homem. Nunca o tinha visto. De todos os homens da cidade que conhecia este era para mim uma cara nova. Esteve assim até à tarde. Fora do carro, a entreter-se com um cigarro e com as botas que se poliam no ar quente do deserto. Parecia não ter vontade de me falar, que tinha vindo apenas tomar conta da ocorrência. Mas isso não era de todo verdade como não era o ódio que a cidade nutria por mim.
Desci e dirigi-me a ele.
Não se afastou. Recebeu-me até com um enorme sorriso, começando logo a dar com a língua nos dentes.
- Ando há dias a olhar para si, vejo-o de longe e tenho prazer nisso. Dá-me vontade de andar às voltas, de o ver assim como a minha luz ao fundo do túnel. Tem aqui um lugar estupendo e eu sei que não há mais ninguém que me possa ajudar.
- Mas do que precisas tu, amigo?
- O que eu quero não é muito. Não é nada. Mas sem isso não posso viver e enquanto não o tiver não vou poder sair daqui, vou continuar assim, às voltas.
- No pouco que for posso tentar ajudar. – digo-lhe, já a coçar a cabeça e com vontade de subir de novo para o meu mastro.
- Quero que volte a por de novo a emissão do Discovery Channel no ar, não posso passar sem ela. É todo o meu alimento.
É escusado explicar-lhe que isso não depende de mim, que neste assunto não sou especialista. Que de televisões não percebo nada. Mas não vale a pena. Porque lá ao fundo, no horizonte, a Sul do meu paraíso, pressinto outra veia a evadir-se. Outra viatura às voltas com figuras lá dentro que vão decerto pedir-me do mesmo. Daquilo que não sei dar. De tudo o que fugi e que me aglutinava. Sei que não vai durar muito o meu descanso e que deste Parque de Diversões só me resta fazer o meu estúdio e lá no canto do escorrega, no quintal, erguer uma antena para me expandir para o mundo. Para lá do infinito que eu já não imaginava e que me vai levar de novo ao coração da cidade. Pelas frequências mais limpas e adormecidas desde as grandes fogueiras.
Tudo o que lhe digo é: - Vem, sirvo-te um café, podemos falar nisso mais tarde. Vamos esperar pelos outros.

SEM MAIS SUSPIROS: “Candy says I've come to hate my body and all that it requires in this world. Candy says I'd like to know completely what others so discretely talk about. I'm gonna watch the blue birds fly over my shoulder. I'm gonna watch them pass me by. Maybe when I'm older what do you think I'd see if I could walk away from me? Candy says I hate the quiet places that cause the smallest taste of what will be. Candy says I hate the big decisions that cause endless revisions in my mind.”
"O Último Homem em Saturno” é um texto de origem desconhecida traduzido pelo Sr. Joid. Publica-se às sextas-feiras aqui neste Jornal.

NOTA DO EDITOR:
O Jornal era o Hoje Macau. Desde Janeiro a Agosto de 2006, durante 27 semanas, foi publicado neste lado do mundo "O Último Homem em Saturno", de presumível autoria de Ring Joid. No entanto, pelo mesmo, que até agora não se sabe bem quem é, esse facto foi sempre negado. O que veio a lume foi que esta era uma história que caiu do céu. Um manuscrito encontrado algures, cheio de hieróglifos e razuras, num idioma que ninguém conhecia e que, na sua modéstia, Ring Joid ajudou a traduzir.
Continha sempre um prelúdio que mantinha os leitores a par do que se tinha passado no capítulo anterior e uma conclusão. Os direitos de publicação desta obra foram entretando doados à BLOOMLAND que a seu tempo a irá reeditar.
A imagem reproduzida aqui, impressa a cores no jornal, ilustrou o último capítulo, que tinha o nome de "Na peugada de Gustavo Klimt Eastwood, The Third."
Creio que está tudo dito.

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