O Citador

Num delicioso delírio literário em forma de romance, um escritor conhecido quer desaparecer tomando como patrono e guia Robert Walser, o escritor suiço que defendia que um escritor que se converte em alguém não faz mais do que degradar-se à condição de engraxador. Num misto de devaneio labiríntico de desaparecimento e associações de factos e ideias tendo como base a rua Vaneau de Paris, o escritor, baseando-se em Montaigne como o precursor do estilo ensaístico (como se sabe, enclausurado no seu castelo), cria e encarna uma nova personagem, o Doutor Pasavento, mais tarde Doutor Pynchon, que, na senda dos pensamentos, escritos e vida de Robert Walser, e de outros escritores com estilos ou pensamentos semelhantes aos dele, procura a arte do desaparecimento, com várias tentativas hilariantemente frustradas, mas sem nunca desistir no refinamento de uma arte da qual a pouco e pouco se torna mestre.

Uma narrativa que declaradamente confunde ficção e realidade, num estilo aparentemente autobiográfico mas que cedo mostra ser uma mistura de estilos com um carácter vincado na forma como o autor dá consistência a um conjunto de acções e pensamentos, que, não levando a lugar algum, valem pelo riquíssimo conteúdo em si e pela forma cativante e divertida como o autor nos troca as ideias e surpreende inúmeras vezes.

Começando por um passeio no castelo de Montaigne, seguem-se uma série de devaneios à volta de uma viagem de TGV de Madrid para Sevilha, de onde parte uma viagem a Nápoles apimentada por discussões literárias e filosóficas com um professor Morante internado num manicómio. Tais acontecimentos são relatados a partir de um hotel na rua Vaneau em Paris, rua a partir da qual se começam a associar uma série de acontecimentos com base em factos históricos e actuais dessa mesma rua, entremeados por uma visita ao manicómio onde esteve internado por vinte e três anos Robert Walser, e um retiro aparentemente final numa cidade inexistente denominada Lokunowo, sem esquecer um relato fingidamente factual de vivências na Patagónia.

Doutor Pasavento, Doutor Pynchon, e um alter-ego Doutor Ingravallo, que é a consciência crítica dos dois primeiros nas suas sendas pelo desaparecimento, combinam-se numa mesma personagem que chega a perder o sentido de si próprio e brinca com a própria reputação do autor aparentemente narrador e personagem principal do livro.

Um livro complexo em termos das divagações e associações que faz entre acontecimentos e vários escritores, mais os seus pensamentos, num caldo de devaneio introspectivo, mas baseado numa escrita fluída e descontraída, presenteando-nos com mil e uma ideias e reflexões acerca da vida e da existência, muitas vezes no limiar do absurdo mas contundente na forma como expõe, através dos pensamentos do próprio autor ou dos autores que cita, as fragilidades das bases de sustentação do modo de vida e valores aparentemente sólidas com que as pessoas encaram a realidade, construção humana que tem mais de literatura que de verdade.

Um hino ao passar despercebido, o enaltecimento de que o convívio e as obrigações sociais subvertem o indivíduo e o desviam de usufruir a sua existência numa bela infelicidade, em vez de uma constante luta pela felicidade que não passa de uma ilusão, o que a velhice acabará por demonstrar. No entanto o aparente sucesso do passar despercebido levanta ao narrador a angústia de ninguém reparar nele...
A subtil crítica ao modo de vida do homem do nosso tempo, desaparecido na mediatização de todos os acontecimentos e que luta por uma identidade que nunca terá direito a mais do que cinco minutos de fama.
"Doutor Pasavento" ● Enrique Vila-Matas ● Teorema
[por Paulo Neves da Silva via CITADOR]

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