- Sim?? Diz lá, querias dizer uma frase, não era? Isso que me estavas a dizer ao ouvido?
- Sim. Quero. Não é uma frase. Mas estou envergonhado. – O Ventríloquo não é lá grande coisa, para além de mexer muito os lábios, ri-se sem dar por isso.
- Diz lá, vá, não tenhas vergonha. Diz lá o nome do livro.
- Não é um livro. É mais do que isso. É a pessoa que os escreve. – Se se pudesse eleger o melhor ventríloquo, este não era eleito. Este era eleito o pior do seu bairro. O que já não é mau.
- Está bem. Então vá lá... quem é o autor? Por que letra começa o seu nome?
- Não me faças cócegas, eu sei falar sozinho, escusas de estar para aí a tentar dizer qualquer coisa, com a mão dentro de mim, a pensar que as pessoas acham que tu és muito bom. Que és muito bom V-E-N-T-R-Í-L-O-Q-U-O! – Estavam os dois a ocupar o seu espaço. O Boneco não era lá muito parecido com o Pinóquio, mas dava ares.
- As pessoas sabem o que sabem. Confio nelas, elas também, de um modo generalizado, confiam em mim. Isto é, não lhes faço mal nem lhes causo demasiado importuno.
- Está bem, isso é o que tu pensas, e já agora chega para lá um bocadinho. Esse teu bigode muito perto, ainda com restos do teu almoço, faz-me um bocado de impressão. – Vendo bem, até que tinha a sua piada, este pequeno espectáculo de rua. Enquando falavam, vinham também a andar, aos espectadores, era preciso andar de costas para os poder acompanhar e perceber tudo o que se estava a passar.
- Como se chama o autor? Isso é que nós queremos saber. Não faças essas carinhas para a rapariga, olha que ela é comprometida. – Uma rapariga de mão dada com um homem mais velho, vestida com umas calças justas e uma blusa assim a dar para o transparente, anda para trás, a passo certo. Sorri, com desdém, para o Ventríloquo.
- A miúda é gira, que queres que te faça... eu gosto de ver o que está por baixo, mas só assim, sem ver. – O Pinóquio era um boneco que falava de verdade, o “Pai” era carpinteiro e numa noite de trovoada esculpiu-o porque estava com medo de estar sozinho. Chamava-se Gepeto e andava por lá também um gato.
- Agora de repente estava a lembrar-me do gato do Pinóquio mas não me lembro do nome dele, lembras-te, tu?
- Isso quer dizer que já não queres saber do nome do autor e dos livros que ele escreveu? É mais importante o NOME do gato do Pinóquio, é? – Estavam quase a chegar ao fim da rua e tinham que dar a volta ou contornar a velha Praça. A Praça tinha uma estátua com um homem a cavalo. O cavalo tinha as quatro patas no ar. Era incrível aquela estátua, ninguém sabia como tinha sido feita nem de onde tinha vindo, mas dizia-se que por baixo havia um grande campo magnético.
- O autor? – O Ventríloquo continuava a olhar para a Rapariga. Andava para ela, mas ela acelerava o passo, porque pensava que tudo aquilo fazia parte do espéctaculo.
- Sim, o autor, os livros, estamos aqui para recomendar livros, já te esqueceste?
- Ah, está bem! – Estava prestes a largar o boneco, ou a dar-lhe uma trolitada para se calar.
- Boris Vian!
- Quem?? – Ainda pensou que esse fosse o nome do gato, mas não fez caso disso. A Rapariga tinha olhos azuis, não era muito loira, dependia da luz, dependia da hora do dia. Tinha qualquer coisa na boca, pastilha elástica ou assim.
- Boris Vian. Ele tem livros muito bons. Tem os livros de que eu gosto mais.
- Que será que ela tem na boca? Será mentol, será outra fruta?
- O Boris Vian disse: «Dizer idiotices, por estes dias em que toda a gente reflecte profundamente, é a única forma de provar que temos um pensamento livre e independente.» - O Boneco preparava-se para descer dos braços do Ventríloquo. Estava farto daquilo.
- Olá, gostava de ouvir a sua voz, pode abrir a boca e dizer qualquer coisa? – O Homem que estava a dar a mão à Rapariga tinha ficado lá atrás, no meio da rua, a beber uma cerveja. Bem fresca. O Ventríloquo estava a mostrar os dentes todos.
- O livro chama-se, se ainda queres saber, Boris Vian por Boris Vian, e foi lançado pela Fenda?
- Fenda? – Diz o Ventríloquo, já com as mãos desocupadas, mesmo antes de levar um estalo da Rapariga.
- Eu gosto muito do Boris Vian! – Esta era já a voz dela. Que, colocando a mala no ombro, começava a ajeitar o Boneco na sua blusa transparente.
- É verdade, toca trompete e tudo, de certeza que também faz outras vozes. - A Rapariga mexia os lábios mesmo muito pouco. Ria-se, mas nem se dava por isso. Era mesmo a melhor do seu bairro.
“Boris Vian por Boris Vian”, de Boris Vian ● FENDA ● 2006
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Já agora, quero esclarecer que a fotografia do velhote ali em baixo não sou eu. Têm sempre a mania de achar que eu sou este ou aquele. Brincarem com isso é que não tem piada. Em 1953 se eu tivesse aquele aspecto hoje, claro está, já não estava vivo. E as pessoas percebem que estão a fazer pouco delas. 1953? Isso foi há 58 anos! Não me tomem por tão velho.
De qualquer modo gosto cada vez mais de estar na Bloomland. Obrigado.