Meu Caro
Gostei mais da tua carta que do texto que me enviaste a propósito da Cidade Queimada, embora este fosse, ou fosse a fingir, de altamente elogiativo: Corrijo: na tua boca, na tua maneira, ele é realmente elogiativo. Está lá o velho programa que traçaste para os teus mais próximos: cadeia, ou hospital. Tua ânsia, velha, que sempre te fez sobrepor, adiantar-te, esmerar, por conta própria, os serviços policiários. Conheço isso. Todos os presidiários falam de si mesmos e dos colegas como da classe aparte, ou a única que importa considerar. Estive preso, cá e lá, mas, muito pior que isso, tive cinco anos de liberdade vigiada que deram cabo de mim. Lembro-me de que nessa altura tu achavas graça a uma expressão do Lima: o poeta que vai à revista. O poeta foi à revista e matou-se aí. Ou mataram-no. Ficou uma coisa esquisita, de onde sai o excesso de pânico que me atravessa quando novas hipóteses se põem. Excesso, digo bem. E adiante. Por isso tenho memória de velha. De elefante. Não acho que sejam velhas coisas, estas. Nem tu. De enternecer, enfim, o preocupares-te com o tal teu amigo que diz que eu estou uma merda e com o G. Cruz que diz que eu perdi as imagens coitado. Olha, não te preocupes. Alguma coisa me diz que os meus poemas, com imagem ou sem, são a merda do pássaro. Essa os lambuza e ocupa, sejam más sejam fortes as cagadas. Quanto ao pássaro propriamente dito - o canto - ninguém viu. Acho que não o podem ver.
Não me defendas. É pouca a paternidade: Ramos-Rosa-Gastão-Cruz que pões na tua carta. Estes e outros foram todos beber a um que dizia isso com mais graça: o Luiz Pacheco. Assinado por ti, fui um pobre diabo, um que pinta com merda, uma barata em ascensão para as coroas, um que está bom para saldos, não quer ir para a cadeia, lembrarás o resto. Quando um dia foi possível reeditar o Lisboa, cujas primeiras edições já não existiam, o horrível crime foi punido: pediu oito tostões à mãe para o eléctrico e foi à editora.
É a isto que na tua carta chamas «verdade histórica»? Homenagem, querido, faço-te esta: a de tentar acreditar que tu acreditas nisso. Que é possível haver uma verdade para o dia 16 - verdade com tal força de verdade que chega para assassinar em duas forças de linha o amigo mais próximo - e haver outra correctiva da primeira ou mesmo, se preciso, sua antítese para o dia 18. Será verdade que acreditas nisso? Será possível que haja essa verdade? O assassinato da família do Kafka e a reabilitação do Kafka?
Para mim, era-me impossível viver, ou morrer, se tivesse de chamar a isso verdade. Que é o que te acontece. E tu dizes: justiça! Horror dos horrores. Assentemos pois nesta verdade: deixa-os dizer o pior, e o pior do pior. Não intervenhas, ficas caricato. Nada disso me ocupa, nem sequer incomoda. Golpe fundo foram os teus ataques, duplamente mortais para o nosso convívio: se justos - o poeta na «decadência» - de uma crueldade desnecessária; se injustos - o poeta a braços com um amigo louco - de uma crueldade de louco.
A minha pergunta - era uma pergunta o que te fazia ao enviar-te o teu postal de há 8 anos, - não é ao acaso. Tenho um livro a sair, «A Intervenção Surrealista». Dentro em breve, as provas. Como é de obrigação, surges nele. Há no livro documentos bem mais antigos do que as tuas campanhas contra mim. E não estão nada velhos. Em nada. Por isso perguntava: que faço eu com isto? Se achas que envelheceu, que já não é verdade, é uma resposta, com linguagem tua. Se achas verdade histórica, além de esquisito, é pouco. E é de lado.
Dúvida, é isto: incluo, não incluo o teu artigo sobre o meu «Picto-Abjeccionismo»? Sei que o retiraste do teu livro, mas: achas que podemos fazer isso? É, com o artigo do Virgílio, a única coisa que apareceu na Imprenso.
Se incluo, vais ouvir coisas horríveis, porque te dou resposta. Se não incluo, voltamos ao mesmo: que faço eu com isto?
A tua verdade histórica é a merda.
Diferente na minha neste ponto: é possível que a minha vida tenha dado cabo de mim, ou eu cabo de mim nela; o amor que tenho à vida fez-me sempre evitar dar cabo da vida dos outros. Não «enterrei» ninguém sempre até à última quis a vida dos outros. Tu incluído. A tua pressa em dar cabo dos outros, diz-me que vida é. E que espécie de cabo. Sempre até à última quis a vida do António Maria Lisboa. Mesmo nas edições que dele fiz. Toda a égloga fúnebre afastada. «Não se trata de um homem que vai morrer»... E do teu medo de perder o que ainda não perdeste dos textos do Lisboa, não terá culpa alguma o próprio Lisboa. Se tens medo de perder o que ainda não está perdido, põe em lugar seguro, ainda há alguns. Mas acaba com a chantagem insinuada na tua carta. Se quer fazer-se uma edição decente, ideia de luxo excluída, digo decente, colaborarei com gana. Se quer fazer-se uma edição despachativa só porque tu podes perder o resto, mando-te já à merda, a ti e à edição. Falando com o Victor, parece já conseguida uma certa concessão da parte da editora: farão um livro integrado na colecção mas em formato maior e maior cuidade gráfico.
Dizes que no ano passado te salvei a vida. Se é verdade, fico contente. Salvá-la-ia muitas vezes mais, se pudesse. Conforte-te saber, se não puder repetir-se, que da única vez que tive dinheiro meu, o reparti contigo, quanto pude. E que fiz o meu melhor para que outros fizessem algo parecido. E fizeram, mesmo pouco parecido. Há muito anos que joguei em ti, a favor teu, não como editor - por mais que isso te ofenda - não, também não, como a louca dos papelinhos que trazia a cidade divertidíssima e para quem o papelinho e a sua função, diversa, contava muito mais que a verdade. Qualquer verdade. Da qual verdade o burgo não queria. Tu também não. Joguei, eu, no que tinhas de melhor. «O senhor não é palhaço, o senhor é escritor». Estas linhas do Lisboa, cantei-tas várias vezes, em vários tons. Soube isso no teu texto dos Doutores, Salvação, e Menino, que continua a ser para mim o texto lúcido que, em literatura, a época forneceu. Soube-o de novo, com imensa alegria, na publicação do Teodolito. Diante de um texto tal hão-de curvar-se, sem querer, todos os merdas do literato lisboeta. E, o que é mais: pela primeira vez encontrava a tua humanidade, a tua forma natural de sorrir - tens o sorriso mais bondoso, espanta-te, de quantos vi a tentar abrir os lábios: sai quase sempre careta, lá o diz o Lautréamont - diante das calamidades. Melhor: eras o homem que se confessava isso, homem, e em que mundo assim, de que maneira! Nada a ver com os teus papelinhos acusatórios, de boa ou má esguelha, para a vida ou para a morte dos outros. Creio que não piorei o texto publicando-o com as «emendas» ou «chaves» que tu próprio aceitaste. Acho mesmo que ficou melhor, o que decerto te ofende. Outros textos tens parido de igual, ou maior altura? Este o Luiz Pacheco que conheço, o único que de facto existe e posso amar, mesmo conservando na gaveta, como conservo, e não esquecendo, não são para esquecer, feridas abertas. Em corpo frágil.
P.S. - Na folha publicitária que o Victor Tavares te fez, leio que te consideras velhote. Não te preocupes. Nem te defendas tanto. Parece mal. Será manobra, também. Não me preocupo. Preocupa-me - outra vez!! - o destino dos inéditos. Exceptuada a raiva, que permanece, vi-te sempre abandonar tudo, todos. Em que nome, não se percebe bem. Aceitemos que no do teu registo, L. Guerreiro Pacheco. Não é assim tão feio. Fiquemos aqui.Lx. 1966
in Mário Cesariny, Jornal do Gato, [s.l.]: ed. autor, 1974, pp. 47-51
[À VENDA NA BLOOM, NA EDIÇÃO DA ASSÍRIO E ALVIM]
Bookmarkers: Escritores / Writers, In Bloom, Português
1 Comment:
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- antónio said...
28 March, 2007 11:56Texto demasiado longo para um Blog, não acham? Na verdade não consegui cortá-lo.