Não tinha nome mas era porque não lhe apetecia. Inventava nomes todos os dias para os corpos que passavam, às centenas, na rua onde ia flutuando de quando em vez, nesses últimos tempos quase sempre. Havia quem jurasse ser um homem famoso lá na outra terra, aquela sem nome também, o nome até estava debaixo da língua, ele era tido e reconhecido, sim, diziam, mas o nome não saía, não chegava a existir.
Barba comprida, mas esguia. Meia dúzia de pêlos sombrios, encaracolados do dedo indicador da mão esquerda que fazia rodar enquanto pensava. Um tique em nada semelhante ao dos outros pensadores, os que vinham nos livros. Cabelo variável. A navalha guardada debaixo do lenço de muitas cores, atado à cintura. Navalha para outros fins que não carne. De qualquer espécie. Calças a deixar ver uns tornozelos magros. Chinelos com uma tira, da mesma cor da carne. Dele.
Profissão: nenhuma que se pudesse inscrever em listas oficiais para atribuição de pensões que nunca quis. Escrevia. Era escritor. Ficou sempre por saber se escrevia prosa-prosa, prosa poética ou poesia. Mas isso também já não interessa, dizem aqueles que têm o nome debaixo da língua. Outros, os mais interessados por essas coisas da cultura, asseguram que escrevia sobre a vida e de todas as formas, da prosa mais esculpida à poesia mais impura, a que sai de dentro. E escrevia sobre a vida, que era a única coisa que tinha, argumentavam sem grandes certezas.
Certo é que escrevia, disso ninguém duvida, rolos e rolos de papel que não se sabe onde desencantou. Escrevia sempre de pé, apoiado ao muro debaixo das escadas. E não era um vão vulgar o escritório-casa-rua. Desde logo pela localização, que o material de que é feito é cinzento como todos os outros. Mas fica ali, entre o jardim das grandes festas de damas e cavalheiros de outros tempos, quando ainda existiam, quando ele ainda tinha um nome provável, e a rua onde se vendem todas as altas e baixas tecnologias. Também não era um vão de escadas vulgar porque eram rolantes. As escadas.
Tinha uma caligrafia alinhada, minúscula, por isso escrevia muito perto dos rolos, o braço esquerdo a enrolar os cabelos quase sempre compridos, esguios. O corpo frágil, atado, debruçado no muro. A ameaçar cair. Num estranho equilíbrio, um movimento constante, o mesmo dos desenhos que fazia, com uma rapidez controlada, nas horas depois da rua acalmar.
De dia desaparecia, nesses últimos tempos quase nunca. Deixava-se ficar e via quem passava, quase todos com um nome, num corropio de palavras sussurradas e quase ensurdecedoras. À noite também falava, mas pegava nos rolos, afastava o muro do corpo e ia por ali, sem nunca pisar o jardim. Lia. Ninguém conseguiu alguma vez identificar as palavras todas que dizia, também não eram assim tantos os que passavam ali àquela hora. Há, no entanto, quem jure a pés juntos que não era sobre a vida, ai isso não, que da vida dizia nada saber.
As palavras eram todas sobre fantásticos acontecimentos, coisas inimagináveis, absurdas, jamais pensadas. Esses que dizem ter percebido não tudo, mas algumas partes, asseguram que todas as palavras eram encantadoras, especialmente aquelas que eram inventadas e, por isso, tinham os sinónimos dos sonhos. Os menos interessados por essas coisas da cultura dizem que não há palavras e muito menos sonhos, declarações feitas em entrevistas concedidas ao abrigo de prédios de trinta andares.
Não que alguma vez tivessem tentado, mas os que com ele quiseram um dia privar mais de perto – dizem os que têm o nome debaixo da língua, que não se conhece quem com ele tenha querido qualquer espécie de privacidade -, nunca conseguiram tocar nos rolos. Nem na barba. Nem no cabelo. Nem sequer no dedo indicador da mão esquerda.
Morreu durante a noite. Ninguém se lembra do momento, das circunstâncias, das causas, nem da ambulância ou do funeral com papéis a arder ao vento.
Desconhecem-se mulher e filhos.
Fotografia roubada (de novo) a Renato Roque
Bookmarkers: Contos/ Short Stories, Português