E que dizer da última crónica de António Lobo Antunes escrita entre as paredes de um hospital?
A notícia, a doença, a mudança abrupta de perspectiva, colhe sempre de surpresa. Mesmo quando se trata de outra pessoa, mesmo quando não somos nós. Mesmo quando esse mal "antes levou tantas das pessoas" que mais queríamos. Que mais querer quando nos afecta a nós? Quando está ali, dentro do corpo, a fazer com que o futuro desapareça. É isso que lemos das palavras de Lobo Antunes ainda cheias do embaraço da dor e da explosão da realidade. Isso mesmo, sem "tretas".
E agora? Onde está o escritor, onde está aquilo que sempre esteve dentro dele, o homem. Ou será ao contrário? Lobo Antunes sempre disse que as palavras não eram dele, os livros que estão para aí, publicados, não são dele, são das palavras que os escrevem, como o último, já "pronto há um ano e tal" e que espera pelas traduções para se espalhar como metástases pelo mundo inteiro, todo em simultâneo. O mundo de repente num só lugar, dentro de um só momento, entre quatro paredes de um hospital. "Esse livro tem a melhor prosa que fiz até hoje", diz o homem, aflito, que com a perspectiva desfocada saltou do altar de escritor, "Parece recitado por um anjo." E as mãos a tremer por terem deixado de ser nossas, por que já não são elas que escrevem e nós não estamos dentro delas.
Onde está Lobo Antunes a esta hora? Neste momento? Ainda no hospital? Em casa? Ainda a remoer estas páginas novas da sua vida, que se encavalitaram por cima das outras, por cima dos livros e as mancharam com um borrão?
A última crónica do escritor, do homem, não do anjo, é das coisas mais belas que li até hoje. É um espanto, como é um espanto os dias que nos percorrem. Como é um espanto a beleza do mundo que de repente, sem dizer nada, sem recitar, muda de feição e vai fazer o ninho para outro lugar. O futuro a encurtar-se, as pessoas para lá disso, a esperança, e tanto ainda por fazer!
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