Uma questão de economia

Cena filmada, off the record, entre dois funcionários dos Serviços de Economia.
- Espera, estás a dizer o quê? - Era um homem que falava.
- Isso que acabaste de ouvir, isso mesmo, sem tirar nem pôr... - Esta senhora tinha saias. E não era má de todo.
- Mas porquê, posso saber porquê?
- Se queres saber, sempre quis experimentar, sempre me apeteceu. É uma fantasia de longo curso. - Sim, não era má de todo. Olhando para ela uma pessoa quase que se perdia. Ficando sem saber onde estava.
- Mas ouve lá mesmo agora saiu este Código de Integridade, não podias ter escolhido outra altura? - O homem estava um pouco mal vestido. Despenteado, até.
- Sim, quero lá saber. Aliás, quero, porque me irrita, mas não tem nada a ver para o caso. É mera coincidência. É mais uma rampa de lançamento.
- E o que é que eles vão dizer? - Lá fora estava um daqueles dias cinzentos, cheio de humidade no ar. O costume.
- Para além disso, nesse código que falas, que por acaso tenho em cima da minha secretária, não diz que uma pessoa não se pode prostituir. - E com isto encostou-se um pouco à parede, mas só porque estava um pouco cansada.
- Mas diz para "não solicitar prostitutas"! Isso é bem claro. Para "não dissipares o teu dinheiro". Para formares "bons hábitos de vida". Não me digas que a prostituição é um bom hábito de vida.- Não dava para perceber se o homem estava realmente interessado no assunto em profundidade ou se estava só a meter conversa.
- Queres saber? Sempre quis, um dia ou outro, ser uma Puta. Sim, Puta com P grande.
- Uma Senhora Puta? - perguntou ele. Estava de boca aberta.
- Isso. Ou tanto faz, também não importa muito.- Abanou de leve o cabelo, suave, apetecia passar as mãos por ele. E tentar tocar qualquer coisa, uma valsa, ou assim.
- Mas queres ir para a cama com desconhecidos, é? - Ele não sabia bem em que ponto estava, se eram realmente conhecidos ou desconhecidos. Estranhos.
- Não é isso, não te sei explicar. Primeiro apetece-me brincar. Brincar comigo. Estar ali à espera do que vier, que não sei bem o que é. É qualquer coisa. Quero experimentar. E para além disso sempre tenho uma companhia, sempre posso passar um bom bocado. Mesmo que seja mau. Mesmo que não goste. Tu não percebes isto, são coisas de mulheres... - Faltavam dois minutos para a hora de almoço. O homem começava a ficar impaciente.
- Se queres companhia, eu posso fazer-te companhia. Posso ir contigo até onde tu quiseres. Não precisas de te prostituir. Garanto-te que podemos passar um bom bocado. Tenho a certeza... - Não tinha bem a certeza, realmente, a que se referia. Antes tinha tido três ou quatro encontros amorosos. Sem sabor. Ou mais, já não se lembrava muito bem. Porque lhe pareciam todos o mesmo. Um bocado à bruta. E prostitutas tinha conhecido várias. Umas eram massagistas disfarçadas, as outras pediam-lhe sempre dinheiro, mais cedo ou mais tarde.
- Não digo que não. Que não possa ir contigo a qualquer lado. Até posso. Se quiseres até podemos ir já, que estou com um certo calor. Preciso de mudar de roupa. E enquanto mudo de roupa posso esperar um bocado, podes ficar a ver. E podemos, sim, fazer qualquer coisa. - Pegou na mala e começou a andar em direcção ao corredor onde estava uma fila de pessoas à espera para picar o cartão, ou enfiar o dedo no novo reconhecedor de impressões digitais, que ainda estava em fase de testes.
- Hmmm... Sim... Espera, hmmm, claro, vamos, onde? - Um pingo de suor caía-lhe da testa. Tinha um pequeno bigode. Lembrou-se também que não tomava banho há dois dias. Normalmente, quando ia à casa-de-banho e fazia as suas necessidades - de pé! - não conseguia ver bem o que estava a fazer. Tinha uma barriga de seis ou sete meses, este homem.
- Há muito que não experimento um barrigudo. Vamos lá, só temos uma hora e meia.- Na fila estavam quinze pessoas, de várias idades e etnias.
- Não sabia que eras assim, há quanto tempo estou aqui e eu sem dar por isso, que eras assim... - As suas mãos estavam húmidas. Um certo pavor subia-lhe ao de leve pela camisa. Não sabia se era nervoso ou se era o começo de algum prazer acidental. Um delírio.
- Pois, não importa. Mas ouve, vamos já estabelecer aqui uma coisa. Isto não quer dizer nada.
- O quê? É melhor para ti, não é? Assim não precisas de te prostituir. - Parecia-lhe mesmo que tinha dito uma coisa acertada. E por pouco o seu rosto quase que se iluminava.
- Aí é que tu estás enganado, era isso que te queria dizer, no final vais ter de me pagar, e não é pouco!
O homem estava confuso. Ali no último lugar da fila, que começava agora a avançar para a hora de almoço, lembrou-se de novo do Código de Integridade. Uma das recomendações finais era de que caso tivesse dúvidas podia recorrer ao conselho do seu superior hirárquico. Já não tinha bem a certeza do que estava a fazer, se no final do ano lhe iriam renovar o contrato. Mas, pelo sim pelo não, era preciso estar calmo. - Pára de suar! - disse para dentro de si, ao mesmo tempo que olhava por cima do ombro, para o fundo do corredor.
Lá atrás estava o seu Chefe que, um pouco apressado, se preparava para sair pela porta de emergência. Momentos antes, também de relance, tinha visto alguém esgrimir-se pela mesma saída. Tinha quase a certeza que era a rapariga do bar, a Não Sei Quantas.

3 Comments:

  1. isabel said...
    Ring ring... As estórias com finais abertos... Ou há um segundo capítulo? Beijos e welcome back!
    Anonymous said...
    Vim aqui por acaso e gostei muito do que vi e do que li. De toda a infindável informação sobre livros disponível neste espaço. Para além de estar muito bem desenhado. Parabéns!
    Gostei também deste pequeno conto. Segui os links e li tomei conhecimento da notícia em si e acho que o texto está muito bem apanhado. Quem é o senhor que o escreve, alguém conhecido por essas bandas?
    Bem Haja!
    Anonymous said...
    Muito obrigado. Volte sempre!

    O Ring é uma pessoa com quem eu um dia troquei de malas. Por engano, num aeroporto, levámos a bagagem um do outro. Quando abri a dele, a pensar que era a minha, porque eram muito parecidas, senão iguais, vi um monte de papelada, que caiu para o chão.
    Eu não queria de todo ler, mas não tive outra hipótese. Aquilo saltava aos olhos.
    Achei aquele mundo magnífico.
    A partir daí ajudei-o a publicar, um pouco contra a sua vontade, aquilo que escreveu. Isto foi há 5 ou 6 anos. Desde então apareceram, ao longo de dois anos, num jornal local, o Hoje Macau, mais de uma centena de "crónicas", ficcão misturada com a realidade, em que tentou vários estilos, e numa segunda fase publicou mesmo um livro em fascículos. Disse que tinha ido parar-lhe à porta, ou caído do céu, e que ele era apenas o tradutor. Mas com essa já outros se desculparam. Chamava-se "O Último Homem em Saturno".
    A Bloom representa-o agora e quer publicar ambas as obras, mais cedo ou mais tarde.
    Quanto ao Ring em si, à pessoa, não à escrita, ninguém sabe muito bem onde está, quando vem, quando escreve. Deixou de aparecer no Jornal. Vi-o mais duas ou três vezes depois da ocasião das malas. Mas demos-lhe entretanto esta abertura que pelos vistos, para nossa felicidade, tem vindo a aproveitar. Ainda bem!
    Vamos estar aqui sempre a olhar para ele.

    Agradeço mais uma vez o seu comentário. Um abraço.

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