Deixa-te cair

A editora Assírio e Alvim, muito justamente, tem vindo a pôr à disposição do público português as obras de Paul Bowles, nome cimeiro da literatura norte-americana contemporânea. Depois da colectânea de contos A Missa do Galo (Midnight Mass and other Stories) e O Céu que Nos Protege (The Sheltering Sky, 1949), traduzidos por José Agostinho Baptista, este ano foi a vez do fabuloso Deixa a Chuva Cair (Let it Come Down, 1952) e as Memórias de um Nómada (Without Stopping, An Autobiography, 1972), traduzidos respectivamente por Ana Maria de Freitas e José Gabriel Flores.

Se Graham Greene chamava a Patricia Highsmith a poetisa da apreensão, Bowles ainda vai mais longe: é perturbante, nos dias de leitura dormimos com dificuldade. Não por terror barato, mas pelo desafio que é virarmos página a página e corajosamente caminharmos para o fim do livro assistindo ao lento suicídio dos protagonistas. Nem é preciso Bowles dar-nos a conclusão de Deixa a Chuva Cair, pois calculamos o fim de Nelson Dyar. Tentando reconciliar-se com a vida, resolve abandonar o emprego que detinha num banco em Nova Iorque e embarcar para Tânger onde Jack Wilcox, seu amigo de infância, lhe tinha prometido um lugar na sua agência de viagens, um estabelecimento comercial que servia de fachada para negócios pouco claros. Nas casas e festas que frequenta, e nas deambulações pela cidade, conhece gente de todo o tipo, a interessante Daisy Valverde, espiões, cambistas e contrabandistas. Wilcox consegue um daqueles negócios e incumbe Dyar de ir buscar nove mil libras a um cambista indiano (Ramlal) e depositá-lo até determinada hora e dia. O dinheiro acaba por não ser depositado porque o contacto no banco se recusava a receber notas de cinco libras e quando Dyar conseguiu resolver o problema, trocando-as por pesetas para de novo comprar libras junto e finalmente efectuar o depósito, a instituição já estava fechada. Ficou assim com 1260 notas de mil pesetas na mão.

Já se sabe que a ocasião faz o ladrão e Dyar decide, pagando a torto e a direito e com a ajuda de um aspirante a contrabandista fugir de barco para a Zona Espanhola. Bowles na introdução ao livro refere um aforismo de Kafka: "A partir de certo ponto, não se pode voltar atrás". É este ponto que é preciso alcançar. É assim febril e crescente a desconfiança de Dyar por todos os pormenores e sinais que o rodeiam. Cada vez tem mais visões e sonha a todo tempo com traições de Thami. Num casebre que arranjou em Agla para se esconderem a droga e o crepitar da lenha na lareira eleva na parede sombras fantasmagóricas, a conversa não tem sentido e os corpos parecem flutuar. Havia qualquer coisa que Dyar tinha de fazer, mas não consegue lembrar-se porque tinha nos bolsos um martelo e pregos. Começa a cantar uma melodia esquisita, abeira-se do corpo de Thami que está estendido e desacordado em overdose, "e enfiando a ponta do prego na orelha de Thami o mais que podia, levantou o braço direito e deu uma martelada com toda a sua força na cabeça do prego. O prego ficou bem cravado como se tivesse sido espetado num coco", pág. 334. É de engolir em seco.
Depois, Daisy Valverde, que se apaixonou por Dyar e é respeitada por quem tem poder, aparece e tenta desesperadamente convencê-lo a aceitar o seu esquema que lhe permitia assumir a responsabilidade dos actos e sofrer as mínimas mas necessárias consequências, para regressar a Tânger. Daisy, entretanto, pergunta pelo rapaz Beidaoui... é o fim.

Paul Bowles nasceu em 1910 em Jamaica na zona de Queens, no Estado de Nova Iorque. O reparo crítico da sua amiga Gertrude Stein sobre uns poemas afastou-o da escrita e levou-o a dedicar-se à composição musical. Casou com Jane Bowles e depois de muito viajar muda-se definitivamente para Tânger. Quase se perdia o escritor que hoje conhecemos não fosse o reencontro com a escrita numa colaboração com a revista View e o arranque decisivo com o magnífico conto 'A Distante Episode', que relata a história de um professor de linguística que é capturado por membros de uma tribo nómada do Norte de África que (ironicamente) lhe cortam a língua e o tranformam num palhaço e num brinquedo. Este e outros contos, com destaque para 'The Delicate Prey' e 'Pages from Cold Point', estão reunidos em 'Paul Bowles - Collected Stories, 1939-1976', edição de 1991 da Black Sparrow Press, que conta ainda com um prefácio de Gore Vidal. Da sua vasta obra constam ainda mais dois romances, textos de literatura de viagens e traduções de textos orais magrebinos.

Esperemos que a Assírio continue com o seu trabalho de divulgação da obras deste autor.

Deixa a Chuva Cair, de Paul Bowles
• ASSÍRIO E ALVIM • 2007

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