Em nome da verdade suprema

Muitos pensam num poema que nunca foi escrito quando se querem referir a algo que não compreendem. A infelicidade, a tragédia, a desventura. É isso um poema, são palavras soltas que não saem de mais nenhuma forma e se juntam naqueles termos de simpatia que por breves momentos escrevem o que não se explica de nenhum outro modo, deixando apenas um travo a coisa passada, mas profundamente marcado na história: são os versos de cada um que a passo e passo se desenrolam numa vida.
É sobretudo o acaso que move toda a engrenagem apesar de todo o plano para a sua criação estar minuciosamente traçado. A criação de um ego e de uma identidade.
Em 1995, no dia 20 de Março, alguns dos comboios do metropolitano de Tóquio atrasaram-se por causa do nevoeiro sobre o Rio Toné. O senhor Ogata, por exemplo, por este motivo também se desprendeu da sua rotina e entrou na viagem para o emprego um pouco mais tarde do que lhe era habitual. O senhor Akashi, nome fictício, que se lamenta que por ter levado a irmã de carro nesse único dia até à estação de metro, a deixou em rota de colisão com a fatalidade em que se veio a transformar toda a sua vida.
Cinco outros homens, na manhã desse dia, espalharam-se pela rede que circula por baixo da terra transportando gás sarin líquido que no momento exacto perfuraram dando início ao que foi o maior ataque terrorista na história do Japão. 12 pessoas morreram e cinco mil ficaram afectadas. Algumas delas sofrem ainda hoje as sequelas desse atentado, danos cerebrais irreversíveis, problemas respiratórios e depressão.
A viúva de Yoshiko Wad crê na sua utopia de que foi a falta de preparação da polícia e a inépcia da justiça, na explicação de outros indícios, que lhe levaram o marido.
São todos estes testemunhos que passam pelas páginas de Underground, título ainda recente lançado pela editora Tinta da China. O autor é Haruki Murakami, escritor japonês com vasta obra publicada, e um dos nomes de maior evidência no panorama literário mundial da actualidade. A razão da sua escrita nasce do confronto com a realidade inexplicável, não só dos acontecimentos que marcam esse encontro com o destino mediático mas tudo o que lhe é adjacente. As questões que ficaram por responder e que tocam o centro da ferida japonesa que se prolonga por todo o seu fatalismo histórico. Como se tudo tivesse sido delineado há muito tempo como a linha de um comboio.
Murakami, há muito a viver no estrangeiro, viu-se na urgência de contar o seu país para o poder compreender, talvez em busca do seu maior poema, e poder de novo considerar-se presente nessa narrativa colectiva da qual se tinha deslocado. Durante quase um ano entrevistou alguns sobreviventes do atentado e procurou sintetizar a réplica da versão que tinha inundado as páginas das notícias. Foi evidente a incapacidade para aceitar a derrota que se abateu sem aviso e que chocou com a noção de que os ataques foram perpetrados por uma seita, de carácter humano, e que apesar de existir em pleno no Japão, foi justificada como uma coisa do mal, externa, a que todos quiseram limpar as mãos. Dando-lhe o alinhamento da inevitabilidade de uma catástrofe natural, como o terramoto de Kobe acontecido em Janeiro desse preciso ano.
O sarin deixa as pupilas contraídas, sem controle, ou cheias de claro ou cheias de escuro, estáticas. De repente, como uma fotografia que fica queimada com a exagerada exposição à luz, o mundo normal desaparece. É desse congelamento que surge esta análise de Murakami. Não só o acontecimento mas a ramificação por outros episódios particulares que levam ao mundo subterrâneo a que o pensamento japonês muitas vezes se recolhe. A imutabilidade que vive à sombra do estigma da “perda de face” e de outros fantasmas. Que justificam os mitos dos Samurais, dos Hara-kiris, dos Kamikazes e possivelmente de um copo de Sake a mais. São histórias individuais, belas, quotidianas, sentenças para o derradeiro momento com que fluem as quadras livres no ritmo cardíaco do momento. Histórias que mais do que formarem um livro são um documento de estudo de toda a sociedade japonesa. Com os seus traumas e os seus mecanismos. As suas ausências. Em que a psique colectiva se confronta pela faixa que se escondeu no reconhecimento partilhado da “Verdade Suprema” como alguém que olhava por eles e os distinguia da sombra da identidade de todas as pessoas.
“Porquê? Porquê a mim?”, perguntam os sobreviventes na voz e na narrativa de Murakami. Nada o poderá justificar à partida mas a concepção do mutismo com que enfrentam o dia-a-dia desafia o rumo de toda a História. Que se viu reflectida no espelho retorcido de uma seita religiosa. O livro é complementado ainda com uma série de entrevistas a alguns membros da Aum Shinrikyo, nome em japonês que não mais será esquecido.
Todas as pessoas já ouviram falar do metropolitano de Tóquio, a imagem que se conhece é a dos funcionários das estações que empurram impassivelmente os passageiros para dentro das carruagens. Nessas horas o metro vai sempre à cunha, e as pessoas viajam torcidas quase sem conseguir respirar. Foi assim nessa manhã, uma como as outras, em que se deu o culminar de um plano bizarro que visava a destruição do centro secular japonês como um terramoto, um processo que se escrevia sob uma crença de fim do mundo. A pouca informação e a incapacidade de reacção das autoridades e meios adequados de resposta à emergência levaram ao extremo das consequências.
Ainda hoje, 12 anos depois, os membros condenados à morte esperam o momento final, em particular o líder supremo Shoko Asahara em quem os seus fiéis depositaram todas as linhas dos seus versos.
Não se trata apenas da descrição do atentado mas a compreensão do seu significado para o futuro, monumentalmente descrito, por quem quer saber mais de si nos outros.
Como o medo ou uma sentença. Ou como um Haiku, os versos que os monges zen ditam para o papel antes de morrer e que nunca antes foram escritos.

Haruki Murakami
Underground, O atentado de Tóquio e a mentalidade japonesa
Edições Tinta da China • Dezembro 2006 • 461 páginas
Título original: “Andaguraundo” • Tradução de Susana Serras Pereira


[PUBLICADO NO TAI CHUNG POU PORTUGUÊS • HOJE • 15 SET 2007 ]

0 Comments:

Post a Comment





Copyright 2006| Templates by GeckoandFly modified and converted to Blogger XNL by Blogcrowds and tuned by Bloom * Creative Network.
No part of the content of the blog may be reproduced without notice and the mention of its source and the associated link. Thank you.