São quase oito décadas de existência, divididas entre três continentes, com despedidas e regressos. O princípio de tudo deu-se em Lisboa, mas foi em Macau que deixou sementes, que o fizeram voltar quase meio século depois de uma partida ensombrada pelo que se passava, então, do outro lado da fronteira. Eurico Ferreira caminha com passos firmes pelas ruas de Macau que não esqueceu, aquelas que continuam iguais, quase sem tirar nem pôr, às da década de 1950.
Pioneiro do cinema de animação português e um dos responsáveis pelo primeiro filme produzido e rodado em Macau, Eurico Ferreira vive entre películas, as artérias estreitas do bazar chinês e a blogosfera. À cidade cristã também vai, essa que lembra de outros tempos, mas a nova Macau ainda não é totalmente conhecida. Vai descobrindo os novos espaços quando se aventura em passeios mais longínquos.
Chegou a Macau sargento, em 1951, a bordo do Índia, embarcação que transportou dois mil homens, ao longo de um mês. “Não imagina o que era, todos aqueles homens juntos durante tanto tempo. Atrás seguia o Timor, com outros tantos tropas. Vínhamos substituir o exército português que esteve em Macau durante a guerra.” Mobilizou-se voluntariamente, quis bater o pé, “revoltei-me em Lisboa”, cidade onde nasceu e onde deixou o mundo do cinema, que então entrava numa nova era com as inovações que chegavam do outro lado do Atlântico.Fiz o documentário, entretanto deu-se um acontecimento em Macau, um funeral majestoso, com todas as tradições chinesas, que foi o funeral do pai do Ho Yin. Fiz esse documentário também.
Em Macau encontrou um “ambiente terrível, os japoneses não entraram cá mas as Portas do Cerco fecharam, havia muita fome e miséria”. As tropas que o Índia e o Timor vieram substituir também não deixaram a melhor imagem dos homens da então metrópole, conta, “a sensação que tive quando cheguei é que estava numa terra diferente, com uma cultura diferente e que tinha que conviver com um povo que mostrava receios, por causa do comportamento da tropa que cá tinha estado.” Mas em Macau encontrou também “a companheira de toda a vida”, um amor à primeira vista de quem teve cinco filhos, quatro nascidos em Macau, o último já num outro continente, “mas feito ainda cá”. E tropeçou, de novo, no cinema.
Dois anos feitos de Macau e de vida militar, “o Ministro do Ultramar resolveu vir cá e trouxe com ele um produtor de cinema, Ricardo Malheiros, e um operador de câmara, que vinham fazer a reportagem da viagem do ministro”. O encontro com o produtor português fez com que a vida desse nova volta, de regresso às imagens e aos sons. Foi dispensado da tropa e começou a trabalhar com Malheiros num documentário sobre os Correios de Macau. “Fiz o documentário, entretanto deu-se um acontecimento em Macau, um funeral majestoso, com todas as tradições chinesas, que foi o funeral do pai do Ho Yin. Fiz esse documentário também”.
Em meados do século passado, a colónia portuguesa não dispunha de meios técnicos de montagem e começaram os primeiros contactos profissionais com Hong Kong. A colónia britânica caracterizava-se, já na altura, por ter “uma indústria de cinema altamente eficaz”, que Eurico Ferreira queria trazer para Macau. “Porque é que Macau não podia ser uma Hollywood? Porque é que não atraímos para Macau a indústria cinematográfica?”, defendia o produtor e realizador. “A Taipa não tinha nada, podiam ter sido construídos estúdios maiores que os de Hong Kong”.
O sonho de Eurico Ferreira não era solitário mas, ainda assim, não teve pernas para andar. “Decidimos começar por fazer um filme para apresentar Macau, com histórias de Macau.” Constituiu-se uma sociedade, com várias pessoas residentes no território, “fui buscar actores a Hong Kong, outros formamos cá”. E aqui começa a história de “Caminhos Longos”. O argumento era baseado em acontecimentos reais do conflito sino-japonês.
“O filme começava com uma família de refugiados de Xangai que vinha de barco para Macau e ia adaptar-se a uma terra que não conhecia. Macau era, naquela altura, um porto de abrigo, entrava toda a gente, tinha as portas abertas”. Pelo meio, ainda a referência à vida boémia da cidade e a histórias verdadeiras de piratas de alto-mar, como a do “tancar chinês que tinha como característica um motor a diesel e que pertencia a um homem chamado Imortal, que era muito respeitado, um pirata que, durante a guerra com os japoneses, saía de noite e ia roubar os barcos que levavam os mantimentos e trazia-os para Macau, onde na altura se morria de fome.”
A meio do filme, o financiamento deixou de existir e houve necessidade de improvisar, cortar nas despesas maiores para poder levar a película à tela. “Deixámos de ter gravador de som, usei um gravador normal e sabia que ia encontrar dificuldades técnicas para poder fazer o filme. Peguei nos sons e medi as imagens, fui para Hong Kong, reproduzi o som até ficar mais ou menos com a mesma velocidade e passei para foto-sonoro. Consegui fazer uma primeira cópia do filme.” Os defeitos técnicos do filme eram bastantes, não dava para levar o filme para a Europa, mas em Macau a expectativa criada era muito grande, não fosse a cidade aparecer no cinema. “Caminhos longos” foi estreado no Vitória, que “já não existe, ficava ali quem desce a Almeida Ribeiro, logo a seguir ao Hotel Central, corria o ano de 1953 ou 54.” Foi um sucesso, garante o produtor e realizador, não obstante alguns pormenores que queria rever numa segunda montagem, a ser feita em Lisboa. “Havia uma cena em que o polícia chegava a casa de uma das protagonistas do filme, ia tocar à campainha, a mão ainda ia no ar e a campainha já fazia trimm, trimm. A malta ria-se à brava.” Estes defeitos técnicos derivados da falta de material para sincronizar imagem e som nunca chegaram a ser corrigidos, outras histórias aconteceram, zangaram-se as comadres e o filme ficou esquecido algures na metrópole. Para a história ficou a aventura, a iniciativa, as novidades. “Os diálogos em chinês tinham legendas em Português e vice-versa,” recorda Eurico Ferreira.
Poucos anos depois, os acontecimentos do outro lado das Portas do Cerco e os ecos da Revolução Cultural fizeram o então funcionário das Finanças arrumar as malas e partir com a família já numerosa para outras paragens. Moçambique foi o destino e por lá ficou vinte anos, até voltar para Portugal. O cinema continuou a fazer parte do quotidiano, a par com as várias profissões que foi tendo, das Finanças ao controlo aéreo.
Há três anos voltou para Macau, depois do maior elo à cidade do Oriente ter desaparecido, cinquenta anos passados do amor à primeira vista. “A minha mulher adoeceu e não resistiu, a minha filha vive cá e convidou-me para voltar.” Aqui sente-se bem, como acompanhou sempre o que há de mais novo publica as memórias num blogue, tem um quotidiano calmo num espaço da cidade quase esquecido. “Há pessoas que não conheço e que me sorriem,” ri-se. O “pouco de cantonense” que sabe chega para conversar, a cidade agrada-lhe, acolhe-o. “Quando vou ali na Avenida Almeida Ribeiro, quando estou ali no Leal Senado, estou a viver exactamente a cidade de Macau daquele tempo. Há coisas de Macau que estão exactamente como era. A única diferença é que, naquele tempo, eu ia à janela do quartel-general e via a ilha da Lapa mesmo em frente. Agora não vejo porque tem um grande prédio.” O crescimento da urbe não o atrapalha porque, sentencia, continua a ser espaço de “aglutinação e intercâmbio de culturas, sem as quais não existem ideias novas”.
Do desenho à cor em movimento
Eurico Ferreira nasceu em Lisboa, em 1928. Cedo, ainda nos tempos do liceu, apaixonou-se pelo desenho, quando Hergé e Walt Disney eram as principais referências em Portugal. “Criei um jornal de parede, que era uma folha grande onde desenhava as minhas histórias e colava no liceu às sextas-feiras. Ao sábado, chegava às aulas e estava toda a gente a ler o jornal”, conta.
As experiências profissionais não tardaram a chegar e começou a ilustrar livros, para a Bertrand e fez obras para crianças. Os desenhos animados em Portugal eram terreno fértil, uma vez que a oferta era praticamente inexistente. “Comecei a aprender a animar, fiz umas primeiras animações e um trailer para um filme”. Até aqui, em Portugal era tudo a preto e branco mas “os americanos já faziam a cor” e chegou o dia em que alguém levou a tecnologia para Lisboa. “Os alemães tinham desenvolvido entretanto um novo sistema de filmar a cores, por camadas, levado depois da Guerra para os Estados Unidos e que foi apresentado em Portugal por César de Sá. Fui ter com ele, que estava empenhado em montar um estúdio, uma empresa chamada Cinelândia.”
Com César de Sá aprendeu a técnica e fez a partilha das ideias sobre a importância do cinema. Para Eurico Ferreira, o cinema não é uma arte ou, pelo menos, não é “a sétima arte”, aquela etiqueta que passou a ser lugar comum. “A linguagem cinematográfica é a primeira linguagem não discursiva inventada pelo Homem, é uma linguagem cujas origens são conhecidas, bem como a sua a evolução e gramática.” Antes de arte é, portanto, forma de comunicação. “O cinema é tão arte como a literatura é arte para a língua portuguesa. Há poetas, há escritores, mas eu não tenho que saber ser Camões para poder falar ou escrever”. Por ser, sobretudo, um meio de comunicação, o cinema “deveria ser dado nas escolas, tal como se ensina a ler e a escrever, música, desenho e trabalhos manuais”, defende indignado, sem grandes esperanças de que tal se torne realidade, pelo menos num futuro próximo.
Realizadores favoritos tem muitos, ou então nenhum, que “os produtores são os pivôs do cinema”. Ver cinema “é como ir ao futebol”, por ser um espaço colectivo, ver televisão “é como jogar matraquilhos, faz-se em casa”. E se a vida de Eurico desse um filme? Nenhum, ou um só, “o filme da minha vida”. Aquele que está por fazer.
POR ISABEL CASTRO • TAI CHUNG POU PORTUGUÊS • FOTOS ANTÓNIO FALCÃO / BLOOMLAND.CN
[e aí vão três Germinators cá da casa]
Bookmarkers: Bloom Exclusives, Jornais / Newspapers, Português, Vida / Life
nos anos 70 / 80.
eu como realizador o Eurico como
director de fotografia e camara
man.
Fizemos muitos trabalhos juntos,
lembro-me do eurico sempre de
uma alegria contagiante, um
excelente profissional. Um
excelente marido, e pai de
filhos. Um verdadeiro homem
Só agora soube do se falecimento
o cinema deve-lhe algo.
Eu devo-lhe muito.
para a sua familia os meus mais
sinceros pesares.
Sempre conheci o Eurico com
um sorriso, e sempre pronto a
ajudar, e a inventar e
reinventar a vida. Mas sempre
com o cinema no coracäo.
Meu grande amigo
Eurico Ferreira descance em
paz.
fernando manuel sério
realizador.
www.galeriadeartefernandomanuelserio.blogspot.com