Um fascinante convívio

E se uma pulga, vinda do nada, se alojasse no cérebro de um indivíduo falhado, comandando a partir daí os seus actos rumo à glória absoluta? É esta a estimulante premissa de "Criaturas da noite", "conto moral sem moral" com o qual Lázaro Covadlo argentino radicado em Espanha há mais de três décadas - se apresenta ao público português.

Kafka, Poe, Lovecraft e um punhado de outros ilustres também obcecados pela "glória dos vencidos" - um tema só por si inesgotável na literatura - pairam sobre esta prosa eficaz, que, sob a sua aparente despretensão, revela inventividade e brilho narrativo em doses raras.
O absurdo e o fantástico em que se move a absorvente história encontram a antítese exemplar na figura do protagonista Dionísio Kauffman, um trintão derrotado pela vida que, qual Midas sem fortuna e virado do avesso, consegue transformar em latão (leia-se fracasso) tudo aquilo em que toca.
O errático percurso de vida da personagem começa a mudar no dia em que uma voz lhe interrompe a tranquilidade do sono. O que parecia ser uma alucinação auditiva ou um sintoma de demência revela-se, afinal, bem mais perturbador quando uma pulga propõe ao até aí infausto Kauffman tornar-se a sua consciência - abrindo-lhe de par em par as portas da felicidade terrena -, se, em troca, este lhe permitir uma existência pacífica, devidamente alimentada a sangue, no interior do seu ouvido.
Nesta reflexão sobre a natureza do mal, Covadlo evita habilmente uma tentação frequente em narrativas similares o moralismo. Só assim se explica que Kauffman, ao desviar-se dos rígidos códigos de conduta iniciais, comece a acumular sucessos, mesmo que para tal deixe atrás de si um rastro de atitudes impróprias.
Enquanto cidadão exemplar, embora com uma irreprimível tendência para proferir disparates nas ocasiões mais impróprias, o anti-herói limitou-se a acumular frustrações. A partir do momento em que resolve colocar de lado o altruísmo e centrar-se unicamente no 'eu', a sua sorte muda de rumo. Fama e fortuna passam a ser presenças indissociáveis da sua vida.
Com esta perspectiva arrojada, Lázaro Covadlo ascende ao terreno da amoralidade, ao expor uma visão do mundo que não se confina à redutora visão do bem e do mal, esses opostos tão próximos.
Voz da consciência privada de consciência, a insólita pulga é a personagem-chave de toda a história e, por paradoxal que pareça, a mais real de todas, pois revemos nas suas tomadas de posição os constantes dilemas que atravessam a vida.
A glória sobre a qual Covadlo disserta admiravelmente acabou por atingi-lo quando menos esperava. Depois de um percurso literário marcada pela discrição, o autor argentino obteve com "Criaturas da noite" o reconhecimento de que há largos anos era credor. Além de ter ganho o prémio Café Gijón, mereceu o aplauso unânime de figuras como Enrique Vila-Matas e Luis Sepúlveda. Um êxito improvável que, apesar de só ter chegado quando se aproximava dos 70 anos, ainda nos permite descobrir a sua obra e esperar novas incursões ficcionais em breve.
[SÉRGIO ALMEIDA • JN]

O argentino Lázaro Covadlo (n. 1937) vive desde 1975 em Espanha, para onde veio depois do golpe militar que instaurou no seu país uma das ditaduras mais cruéis da América Latina. Começou a publicar tarde, mas a sua obra, original e cheia de humor negro, depressa conquistou leitores. Este livro é bem um exemplo do estilo ácido e desconcertante com que brinda quem tem a ventura de o abrir. Pode pensar-se em Kafka, claro, mas pouco importa. Nunca a expressão «ter uma pulga atrás da orelha» teve tão brilhante interpretação. Enrique Vila-Matas não lhe poupa elogios: «Trágico e precioso.» A história tem tanto de inverosímil como de verdadeira, num registo burlesco e cómico. Uma surpresa superlativa.

Criaturas da Noite, de Lázaro Covadlo
LIVROS DE AREIA • ISBN:9789899517851 • 2007

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