É difícil imaginar a vida a bordo de um navio transformado em transporte militar que empreende uma viagem a partir de Lisboa em direcção a Macau passando pelo Canal do Suez, viagem essa que duraria aproximadamente um mês. Quando chegámos ao Cairo já estávamos todos ansiosos por ir a terra. Não fomos autorizados. Limitamo-nos a ver o deserto a partir do convés do nosso navio e depois entramos no Golfo de Aden. Um mar sereno, azul a perder de vista. Nem uma onda nem uma réstea de vento. Parecia que navegávamos num espelho azul. Um calor insuportável. A bordo andavamos em peito nu e o comandante de bandeira ordenou que fossem montadas no deck mangueiras que deitavam água bombeada do mar, uma espécie de chuveiros que sempre ajudavam um pouco a combater o calôr insuportavel. No meio daquele deserto um dia passou por nós um outro navio de carga e passageiros que trazia na ponte de comando duas raparigas. Imagine-se o que foi ver o nosso navio, o Índia, todo inclinado a bombordo com perto de dois mil homens ao longo da amurada dando um grito entusiástico quando as duas raparigas no outro navio acenaram para nós. Aquela visão depressa passou ficando apenas um risco branco naquela superfície azul assinalando a passagem do outro navio. Depressa voltaram também os confrontos entre os homens a bordo que ja não se podiam ver uns aos outros. Aquilo era como uma prisão ou talvez pior porque não havia nada para fazer.
A chegada a Singapura era a grande esperança.
Quando chegámos, ficámos ancorados ao largo de umas ilhas e para ir a terra era preciso tomar uma lancha. Aliás entre as ilhas circulavam montes de lanchas porque nelas estavam instaladas várias empresas e a sua ligação com as outras era feita com essas lanchas.
Grande desapontamento. O Cônsul de Portugal veio a bordo e disse que não podiamos ir a terra porque precisamente nesse dia os revoltosos da Malásia que queriam a independência da Inglaterra, iriam desencadear um ataque terrorista contra os ingleses e nós não poderíamos ser envolvidos nisso.
Foi um choque terrível. Todos desataram a protestar e alguns até ameaçaram deitar-se ao mar e nadar para terra (o que não seria nada fácil dadas as distâncias). Então o Cônsul prometeu que iria ver o que se poderia fazer e por volta das quatro e meia da tarde voltou com a notícia de que tinha chegado a um acordo com os revoltosos que protelaram a sua revolta para depois da meia noite e assim poderíamos sair e ir para Singapura em grupos de cinco, fardados, estando de regresso ao navio à meia noite desse mesmo dia.
Assim foi. Visitei Singapura, frequentei com os meus companheiros um cabaret onde dançámos até perto da meia noite e conheci um polícia à paisana inglês que se intitulava a si mesmo como o Charlie Chan de Singapura. O Charlie Chan era um famoso detective de ficção do cinema.
À meia noite estava o pessoal todo na formatura a bordo para se fazer a chamada e faltava um sargento. Ficámos todos de baixo de grande tensão. Por volta da uma da manha ouvimos no escuro da noite o ruído de uns remos de uma lancha que se aproximava do nosso navio. Era o meu companheiro que chegava. Ele subiu pela escada de corda lançada do convés e quando chegou ao nível onde estavamos todos perfilados na formatura, olhou para nós e largou uma gargalhada. O comandante de bandeira deu ordens imediatamente para que ele fosse preso e fechado no porão. E lá ficou até chegarmos a Hong Kong.
Em Hong Kong fomos divididos em grupos e enviados para Macau. Finalmente chegávamos ao nosso destino.
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