Introdução [II]

Os anos passaram. Até que, em finais de 2005, a publicação dos aerogramas e cartas escritas em Angola por António Lobo Antunes, entre 1971 e 1973 – e que li de um fôlego – me recordou o “diário”, os meus textos da diário da guiné j lama, 10 sangue e água pura Guiné. Ainda somos algumas centenas de milhares de portugueses que, como militares, vivemos as guerras de África; no entanto a memória desses anos vai-se inevitavelmente esbatendo, esquecendo. Que conhecem os nossos filhos, os nossos netos do dia a dia dos seus pais e avós combatentes na Guiné,
em Angola e Moçambique? Que sabem do que comíamos, onde dormíamos, como nos deslocávamos, o que sentíamos, como eram as emboscadas, as flagelações, a morte, o medo, as bebedeiras, a alegria? Como era a guerra por dentro? Os meus escritos dos dias da Guiné respondiam a algumas destas questões e, longe de qualquer comparação com a prosa exuberante do autor de Os Cus de Judas, acabei por considerar que valia a pena recuperá-los e publicar.
São textos curtos, perto do real entendido, construído pelos olhos e sensibilidade de um dos muitos milhares de militares que jornadearam pela Guiné. Surgem variadas referências a oficiais, sargentos e praças com quem convivi intensamente ao longo dos vinte e dois meses de comissão. Companheiros de tempos difíceis, lançados para um conflito militar que consumia espíritos e vidas, todos me merecem hoje o maior respeito. Não pretendo, de modo nenhum, com os textos agora publicados, magoar quem quer que seja.
Por arquivos e bibliotecas, procedi entretanto a uma leitura exaustiva de obras relacionadas com a guerra na Guiné e com a conjuntura política dos últimos anos do regime de então. Os textos de militares, jornalistas, escritores, historiadores que se debruçaram sobre o período final do conflito na Guiné encaixam, batem certo com o meu humilde “diário”. Alguns destes trabalhos aparecem citados, referenciados em notas de rodapé que acrescentei à prosa simples que escrevi entre 1972 e 1974.
Dei também uma volta pela net e li muitos dos textos curtos, sobretudo em blogs, escritos por antigos militares que passaram igualmente pelo território da Guiné. Alguns destes testemunhos são notáveis e mostram como o tempo da guerra nos marcou a todos, como, quase quarenta anos depois, ainda trazemos a Guiné a borbulhar dentro de nós.
Numa obra recente intitulada Seis Propostas para o Próximo Milénio, Italo Calvino fala na leveza, rapidez, exactidão, visibilidade, multiplicidade e consistência que devem enformar um texto. O leitor enredar-se-á na malha textual, com o prazer inerente à descoberta e à viagem. Se nesta prosa do quotidiano da guerra da Guiné – de quando em quando espraiando-se por outros
temas, – o benevolente leitor vislumbrar rastos de duas ou três das propostas formuladas por Italo Calvino, associadas ao sentir e naturalidade com que foram escritas, terá sido útil ir buscá-los às pastas já manchadas pelos anos e à cada vez mais serena memória de mim.
Estoril, Maio de 2006
António Graça de Abreu in "Diário da Guiné" • GUERRA E PAZ • 2007

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