As Minhas Memórias (13)

Nos dias seguintes, em conversas com colegas meus de outras unidades mais perto dos acontecimentos fiquei a saber mais ou menos como começara todo aquele tiroteio às nove da noite.
Em visitas anteriores às Portas do Cerco eu já tinha visto que a nossa fronteira não passava de um risco feito no chão da estrada de terra batida que partindo de Macau entrava pelas terras da China, naquela altura não era mais do que um descampado, com um forte à esquerda numa colina a que se chamava o Passaleão e à direita, a poucos metros da tal fronteira, uma casamata em cimento, redonda e com uma fresta por onde espreitava uma metralhadora.
A tropa chinesa da guarnição em serviço na fronteira com Macau não passava de uma frota mal fardada, alguns com alpercatas, calças com rasgões e uma atitude arrogante e provocadora. Dizia-se que eram voluntários da guerra na Coreia que ao fim de um certo tempo eram colocados na guarnição da fronteira com Macau como uma espécie de regalia.
Do nosso lado, a guarnição era composta por soldados provenientes de Moçambique, africanos destacados pelo nosso exército para cumprir o serviço militar em Macau.

Acontece que, naquele dia a nossa sentinela com um pau tinha acabado de avivar o traço no chão que constituía a fronteira e foi fazer a sentinela andando para trás e para diante mesmo junto à linha do chão. A sentinela chinesa por sua vez foi fazer exactamente o mesmo, isto é marchar de espingarda ao ombro com os pés mesmo junto ao risco. Ao cruzarem-se os dois bateram com os ombros um no outro e a sentinela chinesa foi parar ao chão. Não esteve com meias medidas. Pegou na espingarda e matou a nossa sentinela que ficou estendida na terra. Com todas aquelas provocações e alarido tinha-se entretanto juntado muita gente nas Portas do Cerco do nosso lado a assistir àquela cena. Com a morte da sentinela começaram a gritar e da casamata chinesa partiu uma rajada de metralhadora que varreu de um lado ao outro da estrada aos pés daquela multidão. Mas quando se preparavam para nova rajada mais alta e que mataria muita gente, o sargento da guarda do nosso lado deu um tiro em direcção à casamata e a metralhadora nao disparou mais. Depois todos desataram a correr para dentro de Macau e as Portas do Cerco foram fechadas. Mas havia a sentinela morta deitada no chão. O Chefe do Estado Maior deu ordens para que alguém a fosse buscar e então um capitão foi de rastos até à sentinela e arrastou-a de volta para Macau. Contudo ainda levou com um tiro no traseiro.

Como se pode calcular ficou tudo debaixo de tensão, com todas as unidades em alerta máximo.
Ora acontece que entre as Portas do Cerco e a Ilha Verde havia uma fortaleza quase subterrânea, uma espécie de corredor com uma parede virada para o Canal dos Patos, com pequenas aberturas de dois em dois metros onde se encontrava uma metralhadora em cada uma delas. Como se pode calcular, nessa noite estava tudo nos seus postos em alerta, quando uma das sentinelas viu aparecer na fresta em que estava instalada a metralhadora a cara de um chinês. Instintivamente começou a disparar e por afinidade todos começaram a disparar. A unidade que estava instalada na Ilha Verde esgotou a reserva de morteiros e o tiroteio só parou quando os oficiais quase à força, correndo de um lado para o outro, conseguiram ordenar que parassem com isso.
O resto da noite passou-se em silêncio. Só alguns tiros esporádicos disparados para apagar as luzes de Macau conforme fora ordenado. Mas, no dia seguinte pela manhã, quando o sol nasceu, viu-se que o Canal dos Patos estava coalhado de mortos. A guarnição chinesa tentara invadir Macau durante a noite e fora surpreendida pelo tiroteio que a desbaratara.

Como a situação foi resolvida sem termos sido expulsos de Macau nessa altura eu não sei, mas dizem que o Governo da China reconhecia que a invasão tinha sido um acto local e solitário (não havia ordens superiores para essa invasão) e tudo o que pedia era uma indemenisaçã por cada soldado morto. E a partir daí a guarnição chinesa das Portas do Cerco passou a ser desempenhada por soldados regulares, bem fardados e disciplinados.

2 Comments:

  1. Anonymous said...
    Grande história, caro Eurico, isto é um verdadeiro documento para a história de Macau e, sem sombra de dúvida, para a história de Portugal e da sua Lusofonia.

    Vou estar atento a todo o desenvolvimento das suas aventuras e espero que um dia a Bloom publique um livro com as suas memórias integrais.
    Um abraço!
    eurico said...
    Muito e muito obrigado

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