O Jardineiro (III)

Chance entrou no quarto e ligou a TV. O aparelho criava a sua própria luz, a sua própria cor, o seu próprio tempo. Não obedecia à lei da gravidade que encurvava eternamente as plantas. Tudo na TV era emaranhado e misturado, mas com contrastes macios: noite e dia, pequeno e grande, rijo e quebradiço, quente e frio, distante e próximo. Neste mundo colorido da televisão, a jardinagem era a bengala de um cego.

Ao mudar de canal, podia mudar-se a si mesmo. Podia passar por fases, tal como as plantas de jardim, mas ele mudava tão rapidamente quanto desejava ao pressionar o botão do comando. Podia até alastrar-se gradualmente por toda a superfície do monitor, tal como na TV as pessoas, por vezes, se alastravam, ocupando toda a largura do ecrã. Ao pressionar o botão, Chance podia trazer outras pessoas para dentro das suas pálpebras. E foi assim que começou a acreditar que era ele, Chance, e mais ninguém, o responsável pela sua própria existência.

A figura no ecrã de TV parecia um reflexo seu ao espelho. Ainda que Chance não soubesse ler ou escrever, a sua semelhança com o homem na TV era maior de que a dissemelhança. As suas vozes, por exemplo, eram muito parecidas.

Afundou-se no monitor. Como a luz do sol, o ar fresco e a chuva suave, o mundo exterior ao jardim penetrou Chance, e este, como uma imagem de TV, flutuou na direcção desse mundo, mantido em suspenso por uma força de que não via a presença e a que não podia dar nome.Ouviu o brusco guincho de uma janela que era aberta por cima da sua cabeça, e a voz da criada gorda a chamá-lo. Levantou-se, ainda que com relutância, desligou cuidadosamente a TV e saiu. A criada gorda debruçava-se da janela do andar superior, agitando os braços. Não gostava dela. Tinha chegado pouco tempo depois da Louise negra ter adoecido e regressado à Jamaica. Era gorda. Era do estrangeiro, e falava com um sotaque estranho. Admitia que não entendia as conversas na TV a que assistia no seu quarto. Por regra, apenas prestava atenção ao seu discurso acelerado quando ela lhe trazia comida e lhe dizia o que o Velho tinha comido e o que ela pensava que ele tinha dito. Agora, ela pedia-lhe que subisse rapidamente.


Chance de Jerzy Kosinski

LIVROS DE AREIA • 2007

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