Na realidade o Melo Pereira foi até França e comprou o equipamento necessário para se montar um laboratório completo para a revelação de filmes de 35 milímetros (que era o formato profissional), cópia, sonorização, etc. Só que os caixotes com todo esse material, dois anos depois ainda estavam repousando, intactos, no pátio do edifício onde ele tinha o seu escritório. Mas isso é outra história a qua voltarei mais tarde.
Entretanto a minha parceria com o Courinha Ramos ia avançando (fizemos muitos documentários sobre os mais variados assuntos) mas eu queria mais. Para mim o cinema era uma linguagem de expressão cultural e era preciso produzir ficção, expressar a criatividade, fazer comédia e até arte. Avançámos então com o projecto "ZÉ DO BURRO".
Fomos buscar o Zé Bandeira, que era baterista na orquestra de variedades do Rádio Clube, mas também um cómico muito patusco que participava em peças de teatro. Gordo, rechonchudo, muito expressivo e sempre alegre. Era o ideal para o papel de um saloio ribatejano, vestido a preceito com barrete e tudo, que tinha como amigo e confidente o seu burro Cacilhas e desembarcava em Lourenço Marques, porque vinha tomar conta de uma quinta que comprara
em Moçambique a um sujeito que aparecera lá pela sua terra e lha vendera em Murrupila.
Onde ficava Murrupila ele não sabia, e ao que parecia ninguém sabia. Até que nos Serviços Geográficos e Cadastrais alguém descobriu que Murrupila ficava mesmo no Norte, na fronteira com a Tanzânia. Para ir até lá levantava-se um problema. A DETA, companhia de navegação aérea recusava-se a levar o burro e sem o Cacilhas o Zé não ia.
Resolveu-se o problema tomando a decisão de ir a pé. Levou tempos e tempos para percorrer os dois mil e tal quilómetros de Sul a Norte, mas o Zé viu muita coisa nova. Aldeias de africanos, camponeses e até brincou com algumas crianças levando-as a passear no seu Cacilhas.
Até que chegou a Murrupila... e teve uma grande surpresa. O administrador de Murrupila disse-lhe que ele não podia tomar conta da sua terra porque os homens tinham-se passado todos para o outro lado onde um Chinês comunista andava a treiná-los para serem terroristas.
O Zé não percebia a razão de ser dessas coisas. Dizia ele: - Mas porquê ? A terra é tão grande que chega para todos. Juntos, eu com eles, podemos fazer muito mais do que eu ou eles sozinhos. Não interessa... a terra é minha e eu vou viver para lá!
O Zé foi visitar as aldeias que eram habitadas por mulheres e crianças e começou a plantar cereais nas extensas planícies. A pouco e pouco foi recebendo ajudas das mulheres a quem ele ia dando as compensações possíveis (comprara alguns artefactos na cidade que eram muito apreciados).
Até que um dia um homem entra a correr no acampamento dos terroristas e diz para o chefe: - Patrão... está um branco a viver lá na terra.
O curioso é que para uma das cenas filmadas neste campo de terroristas havia um conjunto de homens numa formatura fazendo exercícios militares com espingardas de pau ao ombro.
Haviamos pedido ao exército português para nos fornecer armas apreendidas aos terroristas e aquelas espingardas de pau foi o que nos forneceram explicando que eles não tinham armas verdadeiras, só uns caixotes carregados de dinamite e com uma tampa móvel que enterravam nas picadas para explodirem quanda passavam os Unimogues, camiões militares blindados.
Assim na nossa história o Chinês fardado, com a sua farda tradicional com a estrela vermelha no boné, mandava chamar dois homens e dava-lhes um dos tais caixotes de dinamite para ir colocar na picada por onde passava o Zé do Burro.
Eles assim fizeram. Passaram a vau o rio que separa as duas fronteiras e com uma pá foram abrir um buraco no chão da picada para colocar o caixote. Só que, quando cobriram o caixote de terra, ficou um alto que um dos africanos tentou abater com o pé. Claro. o caixote explodiu de imediato e o Zé que nessa altura vinha a sair de casa e a dizer para o Cacilhas que lhe dava muito jeito ter uma pá, viu com grande espanto uma pá cair-lhe do céu. E o Zé dizia: - Já viste Cacilhas... Moçambique é uma terra maravilhosa. A gente pede uma pá e ela cai-nos do céu.
Quando o Chinês soube disto ficou furioso e mandou mais dois homens com uma espingarda para lhe darem um tiro.
Pela manhã, os dois aguardavam que o Zé saisse de casa, escondidos no mato um à frente e o outro com a espingarda atrás.
Quando o Zé abre a porta de casa o homem da frente ergue-se para o ver melhor e precisamente nesse momento o de trás dispara. A cabeça do da frente bate na espingara e o tiro sai para o ar.
E o Zé estava dizendo: - Sabes Cacilhas! Há imenso tempo que não como um patinho assado.
E com uma caçarola na mão cai-lhe um pato na caçarola.
Com tudo isto o Zé começa a ser encarado como um ser mágico, protegido. Até o feiticeiro lhe atribuía poderes especiais. E o Chinês começa a andar desesperado porque todos os dias havia homens que desertam para o lado do Zé onde os campos verdejantes prometem grandes colheitas. No seu desespero o Chinês acaba então por fazer uma grande descoberta. O sucesso do Zé está no burro. E ao último dos seus seguidores o Chinês manda que roube o burro ao Zé.
Assim foi e o Zé quando soube do desaparecimento do Cacilhas, fica inconsolável. Vai- se fazer a festa das colheitas e todos lhe pedem que fale... que dê início aos festejos. E o Zé, a pedido faz um discurso no género dos discursos do Cantinflas em que usa palavras sofisticadas, ricas em conteúdo mas que no fim não dizem nada. E todos cantam e dançam e deitam-se foguetes.
E do outro lado do rio, sozinho porque até o último seguidor fugiu, o Chinês, com o Cacilhas, toma uma decisão. Atravessa a fronteira e vai levar o Cacilhas ao Zé. Este fica fascinado e abraça o Chinês com ardor e amizade e acaba o filme.
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