AINDA AS MINHAS MEMÓRIAS
Depois de ter escrito as minhas memórias reparei que várias lições da vida que me ajudaram a fortalecer para encarar com mais coragem o destino, não tinham sido incluídas nessa descrição, talvez porque foram experiências muito pessoais mas que, de qualquer forma, fazem parte das minhas memórias.
Assim, por exemplo, quando fui para Paris aos dezoito anos para tentar trabalhar nos estúdios do Paul Grimaud. fui com o Pops, um bailarino que com o seu irmão Louis deram um espectáculo no Coliseu muito no estilo dos Nicholas Brothers, tão famosos naquela época.
Vim a conhecer o Pops num dos cafés da baixa e estava numa situação difícil porque o irmão fora para Paris e ele estava só e não tinha trabalho. Com o consentimento dos meus pais recolhi-o em nossa casa e quando, quase um mês depois ele partiu para Paris para se juntar ao irmão, fui com ele.
Em Paris fiquei num quarto de uma pensão que pagava todos os dias, perto da Praça Pigalle. Até que no terceiro ou quarto dia da minha estadia, tive de ir trocar os meus dólares americanos que tinha levado de Lisboa, com mais alguns que me dera o meu pai, O Pops tinha desaparecido à procura do irmão e eu fui até à praça Pigalle onde já tinha visto trocar dólares americanos por francos franceses aos marroquinos que proliferavam na praça para servir os turistas. Na minha inexperiência deixei-me levar por um deles que me levou os dólares mas não me deu os francos.
Encontrei-me sem dinheiro, numa terra estranha e numa pensão cujo quarto tinha de pagar todos os dias.
Tomei uma resolução. O que eu não queria de maneira nenhuma era ter de dormir ao relento em cima das grelhas do metro de onde irradiava um certo calor, para não morrer de frio nas noites geladas, como via fazer a tantos vagabundos.
Assim, peguei em tudo o que tinha, malas, roupas, sapatos, acessórios de toilete, máquina fotográfica, etc. e fui vender tudo isso.
Com o dinheiro que consegui arranjar aluguei um quarto para estudantes perto da Praça do Arco do Triunfo, com uma casa de banho privativa, pelo período de um mês. Só fiquei com a roupa que trazia no corpo e dinheiro para comer, não sobrou nenhum.
Desta forma fiquei sem comer perto de uma semana. Bebia água com fartura na casa de banho porque tinha ouvido contar uma história de um tipo que se quisera suicidar e deixara de comer, mas como bebia água levou meses e meses para morrer de má nutrição.
Entretanto nessa semana tinha criado relações e até fizera um amigo o Marcel Fagenman que trabalhava como caixeiro num dos Grandes Armazéns de Paris. Quando soube que eu era português quis saber coisas do meu país e contava-me que o irmão tinha pertencido à resistência durante a ocupação alemã. Por uma questão de orgulho e também talvez por vergonha, nunca lhe disse nada sobra a minha situação difícil e que estava a passar fome porque não tinha dinheiro. Passeávamos no jardim e ele visitava-me no meu quarto, apresentou-me alguns amigos e amigas e contou que o irmão, um dia se vestira de oficial alemão para ir a uma festa no Teatro Paramount promovida pela elites militares alemãs e que no meio do festival atirara uma granada para o meio da plateia, tendo liquidado uma data de altas patentes .
Ora um dia estava eu deitado no meu quarto pior volta das quatro horas da tarde (tinha acabado de encher a barriga de água), quando oiço bater à porta do meu quarto. Fui abrir e deparei com o meu amigo Fagenman acompanhado de uns quantos rapazes e raparigas que entraram pelo quarto gritando-me: - Que andas a fazer?... Veste-te que vamos sair.
Vesti-me a acabámos por ir jantar a um restaurante de grande estilo onde comi pela primeira vez numa semana. Estava com um bocado de receio de alguma reacção... comi cuidadosamente, jantei principescamente e não tive problemas. Enchi a barriga. Depois em ar de festança fomos a uma sessão de cinema e por volta da uma da manhã foram-me levar ao quarto. Fiquei sozinho deitado a meditar. Tudo aquilo me parecia estranho como se o Marcel Fagenman se tivesse apercebido de que algo se passava comigo e arranjara aquela forma de me dar de comer sem me humilhar. E quando abri a gaveta da mesinha de cabeceira, encontrei três nota de mil francos. Desatei a chorar.
No dia seguinte enchi-me de coragem e fui comprar uma camisa porque a que eu usava estava a ficar coçada nos cotovelos e fui então aos estúdios do Paul Grimaud procurar emprego. E essa é uma história que já contei.
Paris estava cheia de marcas da guerra. Em muitas pontes sobre o Sena viam-se fitas azuis brancas e vermelhas, como a bandeira francesa, com placas que diziam: - Aqui morreu Jean Jacques... na noite de... em combate com a uma patrulha alemã que violara uma rapariga francesa. Ou que tentara espancar um jovem.
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