As Minhas Memórias (40)

Depois deste jantar de apresentação, uns dias depois, foram-me buscar para um jantar no palácio do Julius Nyerere, Presidente da Tanzânia. Logo à chegada fiquei impressionado com o ar britânico de toda a recepção. O Palácio fazia-me lembrar o Palácio de Buckhingam com os embaixadores e os seus fatos de gala, as suas faixas coloridas, as suas damas em vestidos de soirée. A sala de jantar era um salão enorme com um palco ao fundo onde uma banda militar ia executando as suas marchas. As mesas para quatro lugares preenchiam integralmente todo aquele espaço e estavam todas cheias. Não se via um lugar vago e para além de mim não se via um branco. Devia haver mais algum, pois que havia na caravana do Samora Machel pelo menos dois jugoslavos cooperantes que também traziam uma máquina de filmar e deviam andar por ali.
Assim fiquei sentado na mesa com mais três africanos que se apresentaram e o que estava à minha esquerda disse-me que tinha acabado de chegar do Canadá onde fôra tirar um curso de radialista. Vinha agora para Dar Es Salam, tomar conta da rádio nacional.
Como não podia deixar de ser, a conversa a certa altura recaiu sobre colonialismo, racismo e questões afins.
E, no meio dessa troca de impressões controversas, o meu companheiro de repente toma uma atitude agressiva, foca-me olhos nos olhos e diz-me: - SIM! Porque os seus antepassados fizeram escravos os meus antepassados.
Eu baixei a cabeça, fiz um sorriso ligeiro e com a maior das calmas respondi-lhe: - Meu caro amigo, eu se quiser também faço uma cara de muito zangado, também o encaro olhos nos olhos, e com grande fúria também posso gritar: - SIM ! Porque muitos dos seus antepassados COMERAM antepassados meus...
E você não vai gostar de me ouvir dizer isso.
Repare bem. A Grande Muralha da China, as Pirâmides do Egipto, os castelos da Europa foram todos feitos por escravos. Não hav ia lá um único preto. Era a forma de organização social da época. Só quando nós ultrapassámos essa fase e deixámos de ser escravos é que vocês começaram. Vocês estão é atrasados em relação à evolução da sociedade humana. Dêem um salto em frente e apanhem a frente da evolução social.
Depois disto o meu parceiro não piou mais. Deve ter ficado a pensar no que eu lhe disse.
Partimos depois de avião de Dar Es Salam e fomos aterrar em Mueda no meio de Moçamique.
Começámos a viagem deslocando-nos em jeeps, acampando no meio do mato para passar as noites, comendo no acampamento e por vezes dando alguns saltos de avião. Passámos por Tete e por Cabora Bassa, que eu já tinha filmado, onde descobrira que havia um projecto para fazer mais duas barragens naquele rio, ainda maiores, capazes de dar energia eléctrica para toda a África até ao Egipto.
Visitámos alguns quartéis dispersos do exército português prontos para serem entregues e onde em conversa com soldados me disseram que não havia guerra nenhuma com a Frelimo, que ali perto, dizia um deles, até havia um acampamento da Frelimo, mas davam-se todos bem.
Quando chegámos a Porto Amélia a população foi convocada para um comício no Estádio Municipal, mas à noite não apareceu ninguém. Então foi proclamado no dia seguinte, um festival musical com a participação de várias orquestras e conjuntos musicais que encheu o Estádio. Depois da festa da música o exército fechou as portas do Estádio e tiveram todos de assistir ao comício em que o Samora Machel falou à multidão (e nisso ele era bom).
E uma coisa que não posso esquecer é a beleza espantosa da Baía de Porto Amélia que faz lembrar a Baía do Rio de Janeiro.
Desta viagem de um mês em que várias vezes jantei com o Samora Machel fiquei com a sensação de que era um bom homem, com uma capacidade especial para falar às multidões e que desempenhava um papel orientado por forças que o ultrapassavam e em que figuravam alguns oficiais portugueses.
Também não posso esquecer a Ilha de Moçambique, que me faz lembrar uma vila portuguesa da Idade Média, com um jardim e uma estátua do Vasco da Gama, preservada como se de uma relíquia se tratasse.
Por fim a cerimónia da Independência levada a cabo no Estádio Nacional, onde filmei com emoção a descida da bandeira portuguesa e o levantar da bandeira da Frelimo no mastro principal.
A propósito compete-me referir que a tribuna onde estavam as autoridades com o Samora Machel, foi iluminada por dois projectores meus porque para filmar a luz existente não era suficiente.
E desta viagem toda ficou-me também um grande amigo, um africano que era também amigo do Samora Machel, o seu fotógrafo, o Comandante Soares. O Comandante Soares dizia-me: - Sabe Ferreira, eu fui da Mocidade Portuguesa. Nasci na Beira e estudei no Liceu daquela cidade. Mas um dia senti a ânsia de Indepndência e juntei-me à Frelimo.
Por fim mandaram-me entregar todo o material que eu havia feito aos jugoslavos que o levaram para fazer um documentário que tempos depois foi exibido em Moçambique.

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