Estás a ficar velha

Depois de 'Herman' e de 'Beatles' a Cavalo de Ferro traz-nos mais um volume da representação de Lars Saabye Christensen no universo literário mundial. 'Meio-irmão' é a história invulgar de uma família, percorrida por quatro gerações, que se move pelas diferenças e pela união. No centro estão dois irmãos, o boxeur Fred e Barnum, o seu irmão mais novo. Filhos da mesma mãe procuram através de vidas literalmente opostas encadear toda o sentido das suas existências.
Barnum, a passar por uma crise pessoal, escreve argumentos para cinema e é na história recambolesca da sua família que vai buscar a fonte da sua inspiração, onde existe um mundo de tramas e uma profusão de acontecimentos que despertam todo o panorama da sua criatividade. Cria assim um fio condutor que levam acontecimentos reais para a sala escura onde passam os filmes e onde passa no fundo toda a sua vida.
'Meio-irmão' é um romance épico verdadeiramente envolvente.


(O APARTAMENTO)
Boletta, mãe de Vera, estava longe de ser uma mulher religiosa, antes pelo contrário, já tinha milagres que lhe chegassem, mas agora abriu a porta para a varanda estreita sobre Gørbitzgate, postou-se lá e desfrutou aquele instante por tudo o que valia: os sinos da igreja que tocavam em uníssono por toda a cidade, Majorstuen, Aker e Fagerborg, conseguia ouvir até os de Sagene e Uranienborg, aquele som suave e feroz que era como que elevado pela luz e pelo vento e se erguia numa entoação imensa que, de uma vez por todas, iria calar o eco branco e agudo do alarme antiaéreo. — Podes fechar a porta? Faz corrente de ar! — Boletta voltouse para a porta, quase ofuscada. A escuridão lá dentro ficou ainda mais profunda. Os móveis escuros pareciam sombras pesadas que se deixavam mover, aparafusados pelo duro tiquetaque do relógio no corredor. Teve de proteger os olhos por uns segundos. — Tinhas pensado em ficarmos constipadas logo hoje? Passámos bem durante toda a guerra! — Não precisa de gritar comigo, mãe. Boletta fechou a porta da varanda e viu que a Velha estava junto à estante. Estava ali, vestida com a sua combinação até aos tornozelos e as suas pantufas de veludo vermelhas e tirava livros que deitava na salamandra, enquanto falava rápida e insistentemente consigo própria. O lamento dos sinos de igreja reduziu-se a um único canto. Boletta aproximou-se devagar. — O que está a fazer, mãe?
Mas a Velha não respondeu, ou não ouviu, e foi por isso que não respondeu. A Velha era surda de um dos ouvidos e o outro também não funcionava como devia. A lesão tinha acontecido quando Filipstad explodiu em Dezembro de 43. A Velha estava sentada na sala de jantar e rodava o botão do rádio para a frente e para trás, rádio que se tinha recusado a entregar, alegando que era uma cidadã dinamarquesa e que pretendia apenas ouvir programas de Copenhaga. Ela asseverava que a explosão tinha saído do altifalante com potência redobrada, acompanhada de uma desinibida banda de jazz da América e, assim, a bigorna do seu ouvido esquerdo ficou esmagada, enquanto o estribo do outro ficou deslocado. No seu íntimo, Boletta estava convencida de que os ouvidos da mãe funcionavam perfeitamente, mas que ela se reservava o direito de ouvir apenas o que queria ouvir. Agora via que eram os romances de Knut Hamsun que a Velha tirava das prateleiras e enfiava dentro da salamandra verde. — O que é que estás a fazer?! — gritou Boletta uma vez mais e agarrou a mãe pelo braço. — Estou a acabar com o Hamsun! — Hamsun? Tu amas o Hamsun! — Já não o leio há cinco anos! E ele devia ter saído desta casa há muito tempo! — A Velha volto-se para a filha. Agitou os Frutos da Terra em frente à sua cara. — E especialmente depois do que escreveu no jornal! — O que é que ele escreveu?
'Meio-irmão', de Lars Saabye ChristensenCAVALO DE FERRO

2 Comments:

  1. teresa said...
    Que simpático :-p
    Anonymous said...
    ;-)

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