"Ele será parecido comigo"

Algures num país “visitado pela guerra”, uma rapariga (Adriana) é violada pelo rapaz que meses antes desprezara ostensivamente (Tsargo), rindo-se das suas pretensões românticas e da sua miséria alcoólica. Grávida do “monstro” e incapaz de abortar, como a irmã (Refka) lhe sugeriu, ela pergunta-se o que virá a ser aquela criança por nascer (Yonas), confluência do sangue da vítima com o do verdugo: “Quem é este ser que trago em mim? Quem é este ser que eu alimento? O meu filho será Caim, ou será Abel?”
Aos 17 anos, quando descobre o segredo que a mãe e a tia lhe esconderam toda a vida, Yonas procura o pai criminoso, obcecado com a ideia de assassinar o assassino. Porém, quando o encontra e descobre que está cego (uma de várias alusões ao Édipo Rei de Sófocles), hesita e desiste. A mãe, constatando que o seu sangue prevaleceu, pode então enterrar as antigas dúvidas. Como ela própria diz: “Esse homem merecia morrer, mas tu, meu filho, não merecias ter de o matar.”
Com estas premissas dignas de uma tragédia grega, o escritor libanês Amin Maalouf escreveu Adriana Mater, libreto posto em música pela compositora finlandesa Kaija Saariaho (n. 1952) e levado à cena em Abril de 2006 na Ópera da Bastilha, com encenação de Peter Sellars e direcção musical de Esa-Pekka Salonen, à frente da Orquestra e Coro da Ópera Nacional de Paris.
A colaboração de Maalouf com Saariaho não é de agora. Começou com L’Amour de Loin (O Amor de Longe, também publicado pela Difel), ópera que subiu à cena em 2000 no Festival de Salzburgo, e já tem terceiro episódio: em Novembro do ano passado, estreou em Viena La Passion de Simone, um “percurso musical em 15 estações” sobre a filósofa francesa Simone Weil.

Tens toda a razão, Adriana,
Eu sou um delinquente,
Um rapaz malvado,
Sou um matador.
Em tempo de guerra, a nação
Precisa dos seus rapazes maus,
Precisa dos seus deliquentes, dos seus matadores,
Daqueles que vão sujar as mãos ,
Para que tu não sujes as tuas mãos.
Adriana Mater compõe-se de sete quadros curtos, atravessados por sonhos, premonições, catástrofes e catarses. Sem nunca forçar o tom universal da sua história (passada num arquetípico cenário de conflito militar, capaz de resumir o horror de todas as guerras, espalhando-se “por toda a parte, como fina poeira”), Maalouf constrói uma bela parábola sobre o Mal e o modo como este deve ser superado sem recurso à vingança, esse estigma da humanidade que a tem conduzido, desde a origem dos tempos, à mais pura barbárie.
A linguagem é a que conhecemos dos seus romances, pródiga em achados líricos. Como quando se diz que “a noite laçou, na margem da aurora, o corpo inerte do sonho”.
[POR JOSÉ MÁRIO SILVA]

Adriana Mater de Amin Maalouf • DIFEL • 2007

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