As Minhas Memórias (39)

Tinha acabado de chegar de Salisbury, capital da Rodésia, onde agora me deslocava com frequência para revelar, copiar e fazer as cópias finais dos meus filmes a cores (em Moçambique ainda não tinha capacidade para trabalhar a cores) quando alguém me disse que tinha havido uma revolução em Portugal. Ao princípio não dei grande importância a essa notícia mas depois começaram a acontecer coisas. Apareciam nas ruas grupos de africanos e não só, mandando parar os carros para fazer revistas. Eu fui apanhado por uma dessas patrulhas e um indiano ou goês perguntou-me: - Tens armas?
E eu respondi: - Tenho!... Tenho uma pistola. - Para quê? - perguntou ele. - Para te defender a ti e aos teus companheiros se for preciso - respondi eu.
Pareceu ficar um pouco embaraçado com a minha resposta e de repente disse-me: - Vai- te lá embora. E deixou-me seguir sem mais contratempos. Essa pistola que já tinha dos meus tempos de fiscal do selo, uma ponto vinte e dois, só fez fogo uma vez contra uma árvore para experimentar a pontaria e foi pouco depois apreendida pela polícia numa outra rusga em que fui apanhado. Vivia-se agora um ambiente de tensão e de boatos. Dizia-se que Moçambique ia ser independente e uma democracia. Outros falavam de que o poder ia ser entregue à Frelimo. Surgiu a Renamo que se opunha à Frelimo que, dizia-se, era comunista. A Joana Simião fundou um partido para disputar as tais eleições que resultariam da tal democracia.
O Dr. Almeida Santos, com as suas acções e declarações contribuía poderosamente para a desconfiança e medo que se gerava em volta do futuro de Moçambique. A população de origem portuguesa entretranto começava a ser intimidada e empurrada para fora de Moçambique. Apareciam grupos de africanos racistas (pela primeira vez) que provocavam e intimidavam.
Um grupo de moçambicanos de origem portuguesa resolveu tomar de assalto o Rádio Clube.
Pretendiam nomear um Governo provisório até ao estabelecimento de uma democracia em Moçambique. Tinham escolhido o Dr. Velez Grilo, um conhecido intelectual de tendências esquerdistas, mas um homem razoável para esse Governo provisório. Eu soube de tudo isto através do meu amigo Isaías Duarte, dono da Cave, um dos mais populares nightclubs de Moçambique, quando estava em sua casa, uma vivenda encantadora com piscina, pouco antes dele me convidar para participar na revolta. Eu disse-lhe que não acreditava muito nos bons resultados dessa acção e a verdade é que dois dias depois de tomarem o Rádio Clube e fazer montes de proclamações, o exército português atacou-os em força e despejou-os de lá.
Muitos foram logo dali recambiados para as origens (isto é para Portugal).
Seguiu-se um período em que tudo valeu para assustar e fazer os portugueses fugirem de Moçambique. O Isaías Duarte que além da Cave tinha também uma série de prédios num bairro moderno de Lourenço Marques, não teve outro remédio. Pegou na Marcel, a sua esposa sul africana, e no seu filho e pirou-se para Portugal.
Um dia ia pela estrada fora quando de repente vejo uma multidão de africanos numa frente que quase cobria o horizonte, de catanas e pedras na mão correndo em direcção ao meu carro. Parei rapidamente na berma da estrada e sai. Tinha na minha frente uma multidão aos gritos correndo para mim de forma ameaçadora. Eu reparei contudo que na frente de todos eles vinha um homem de catana na mão destacado, com o se fosse uma espécie de líder e gritei para ele:

- Você!...Você aí...Você pode ter muitos inimigos, mas se calhar também tem amigos. Se trata todos da mesma maneira, mata os inimigos mas também mata os amigos...
Eu gritava furiosamente e isso pareceu abalá-lo um poouco e fê-lo abrandar a corrida. Entertanto ouvi no meio daquela multidão alguém que gritou: - LARGA O HOMEM...
Por sorte neste momento veio ouro carro pela estrada e o tal líder virou-se para o carro que vinha e começou a atirar-lhe pedras. Aquela multidão começou toda a fazer o mesmo e a certa altura o condutor puxa de uma pistola e desata aos tiros contra a multidão.
Eu aproveitei para correr para o meu carro, entrar, pôr o motor a trabalhar e seguir pela estrada fora na perseguição do outro carro que estava todo amassado. Vi-o pouco depois mais à frente parado em frente a uma esquadra da Polícia, com uma mulher e uma criança ao colo sujos de sangue a dirigirem-se para a esquadra.
Uns dias depois calhou ser chamado à Polícia Judiciária para prestar declarações como testemunha de um caso qualquer que já não recordo. Mas recordo muito bem que quando ia a entrar e a subir umas escadas para o primeiro andar, vinha a descer um polícia preto, fardado, que deu de caras comigo e baixou os olhos passando por mim cabisbaixo. Era o tal líder da multidão que eu enfrentara. Mais tarde ouvi dizer que nesse dia tinham morto mais de duzentos brancos.
E então comecei a perceber.
Fui chamado por um respresentante da Frelimo em Moçambique (que por sinal também era português) e me disse de caras. Você parte amanhã para Dar Es Salam onde vai conhecer o nosso presidente Samora Machel (na altura ainda não era Presidente) e depois vai acompanhá-lo numa viagem de um mês que ele vai fazer através de Moçambique para visitar os campos de guerrilheiros da Frelimo e terminar em Lourenço Marques com a cerimónia da Independência. O seu papel é filmar tudo isso.
E assim foi. Dei por mim a viajar para Dar Es Salam onde me hospedaram num hotel muito curioso, que segundo me disseram tinha sido construído pelos judeus.
Era constituído pela cobertura de uma imensa palhota, um teto rondável de colmo com uma árvore gigantesca no centro a servir-lhe de suporte. E descia lá do alto até a um muro branco que formava uma enorme roda com uma abertura que dava para uma série de divisões como a recepção, as salas de estar, o restaurante, etc. Tudo isto sem tecto porque a imensa coberta de colmo lhes servia de protecção contra o sol e a chuva.
Os quartos eram uma infinidade de rondáveis, como se fossem palhotas de uma aldeia mas com paredes de betão. Portanto os quartos era redondos. Fiquei num deles uma semana até que apareceu uma jovem africana, segundo me disseram filha do Eduardo Mondlane, que me levou por volta das sete da tarde até a uma vivenda com um grande quintal e muita gente de prato na mão a comer. Disseram-me: - Pegue num prato de sopa e vá para a bicha. Assim fiz e quando chegou a minha vez de receber a sopa que alguém punha nos pratos vi que era o Samora Machel que estava procedendo à distribuição da mesma. Quando me viu disse: - Ahhhh!...Vocês já chegaram?
E eu respondi: - Sim... Há quase uma semana.
- Muito bem... Coma... coma ! - Disse-me ele.
E foi o que fiz.

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