As Minhas Memórias (36)

Nesta minhas andanças por Moçambique como projeccionista, a certa altura houve um Administrador que me disse que tinha um filme da Organização Mundial de Saúde sobre a malária e que talvez fosse útil exibir esse filme para as populações. Eu concordei imediatamente e assim ele combinou com o Régulo fazer uma reunião das gentes das várias aldeias no largo da Administração, à noite, para uma grande sessão de cinema. Exibi o filme e no fim assisti a este inesquecível diálogo.
O Administrador perguntou ao Régulo: - Então, gostou? - Ao que o Régulo respondeu: - Ah Sim... Eu gostou muito...
E então o Administrador perguntou: - Acha que foi útil a gente mostrar este filme aqui às populações?
Ao que o Régulo respondeu: - Ah! Eu acha que não...
- Porquê? - perguntou o Administrador.
E o Régulo explicou: - No filme mosquito era muito grande, aqui mosquito é todo muito piquinino.
Isto fez-me pensar muitas vezes sobre a razão de ser da educação cinematográfica, porque na história do cinema, na realidade, a primeira vez que o Grifith projectou num cinema um grande plano de um homem a rir, a audiência apanhou um susto e fugiu do cinema em debandada. E isto foi na América não em África.
A par de toda esta actividade exercia igualmente as funções de correspondente da VISNEWS.
A Visnews era uma Companhia Internacional Inglesa com correspondentes em diversas partes do mundo que filmavam acontecimentos que depois distribuíam pelas televisões de todo o mundo.
Assim, fiz reportagens sobre a chegada e a partida de contingentes da tropa, focando sempre os aspectos humanos, como o das raparigas a chorar na hora da despedida, ou a recepção calorosa para aqueles que chegavam.
Havia uma solidariedade natural entre os moçambicanos de origem portuguesa e aqueles que tinham escolhido Moçambique como sendo a sua terra.
Um dia, com grande surpresa para todos, apareceu na baixa de Lourenço Marques um rapaz branco a vender jornais. Os ardinas naquela altura eram todos rapazes africanos.
Em vinte e quatro horas alguém lhe arranjou um emprego e o tirou da rua.
Quando fazia alguma reportagem para a Visnews, filmando em 16 milímetros com a minha Paillard Bolex, corria para o Aeroporto e entregava em mão o filme ao piloto do avião que fazia as carreiras para Londres. Assim que chegava ao destino o filme era revelado, copiado e enviado para todas as estações de televisão do mundo inteiro. Aqueles que aproveitavam a reportagem para incluir nos seus noticiários pagavam. Então eu recebia um relatório especificando quantos países tinham aproveitado o meu trabalho e recebia o correspondente valor cobrado (menos uma percentagem para a Visnews). O curioso foi que de tantas reportagens que fiz aquela que me trouxe maiores proventos foi a dos estudantes do Liceu Salazar que entusiasmados com as viagens interplanetárias e a ida do Homem à Lua resolveram construir um foguetão e lançá-lo para o Espaço. Arranjaram tubos de metal, soldaram-nos e fizeram um foguetão que depois precisavam de encher com um material propulsor. À falta de melhor, desfizeram as cabeças de fósforos e com o pó resultante encheram o foguetão.
No fim, no pátio do Liceu, procederam à contagem decrescente, pegaram fogo ao rastilho do foguetão e este acabou por sair disparado em direcção ao Espaço.
Uma das coisas que sempre me intrigara era o facto de ser Moçambique um território português, nove vezes e meia maior que Portugal, inexplorado e rico, só ter cerca de duzentos e cinquenta mil portugueses, qundo havia perto de trinta milhões de emigrantes portugueses espalhados pelo mundo inteiro. Era mais difícil a um portuguêas ir para Moçambique do que emigrar para a América ou para França.
Muitos portugueses deportados para Moçambique pelo regime de Salazar por questões políticas, fizeram fortuna e eram famílias respeitadas como os Cardigas que possuíam herdades extensas para criação de gado, cultivo de cereais e até coutadas para o turismo cinegético.
A propósito, uma das filhas dos Cardigas, a Vera Cardiga, casou com um caçador internacionalmente conhecido, o Ruiz. O Ruiz ia a Congressos Internacionais de caçadores e numa dessas reuniões conheceu um milionário americano, que tinha um salão de troféus onde coleccionava os resultados da suas caçadas. Tinha ursos polares, elefantes, tigres, gazelas, búfalos, zebras, etc. Mas faltava-lhe um leão.
O Ruiz disse-lhe: - Venha fazer um Safari em Moçambique, eu garanto-lhe o leão.
Nessa altura eu tinha sido contratado para fazer uma semana de filmagens no acampamento e acompanhar a caçada do primeiro Safari porque depois filmaria outra semana de outro Safari e assim por aí fora para se fazer um documentário promocional da coutada dos Cardiga e das caçadas.
O tal milionário americano, o Senhor George Bates de Chicago, chegou para a sua caçada ao leão e só a aventura que então vivi daria para se fazer um filme cheio de grande emoção.
Basta referir que passada uma semana o Senhor George Bates disse que eu continuaria a filmar o Safari dele até ao fim (cada Safari é de um mês) e ele pagaria esse trabalho extra.
Assim passei todo o meu tempo atrás da fila que se organiza para a caçada a um animal selvagem. O animal selvagem sabe defender-se para sobreviver e detecta as pessoas muito antes de elas detectarem o animal. E assim, fogem e escondem-se. É preciso a colaboração de uns especialistas, os pisteiros, que são africanos treinados para detectar os vestígios da passagem dos animais selvagens, e conseguem fazer uma aproximação de surpresa contra o vento e sem ruído de tal forma que conseguem pôr o animal à vista do caçador. Cada caçador profissional tem o seu pisteiro próprio com o qual se entende e com o qual se estabelece uma relação muito pessoal e previlegiada.

1 Comment:

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