As Minhas Memórias (38)

Uma tarde, no acampamento, depois de mais um dia fatigante na perseguição de um leão, o Ruiz preparava-se para tomar um duche e tirou a camisa. Tive então ocasião de ver uma profunda cicatriz que ele tinha do lado direito na base do tórax e que muito me intrigou. Então ele contou-me que tinha tido em tempos um pisteiro a que chamava Pedro, que com ele acompanhara em inúmeras caçadas. Era um africano extremamente perspicaz, excelente profissional e extremamente dedicado ao seu patrão. Um dia, tal como acontecera com o búfalo do americano, este saíra disparado de uma sebe em direcção ao Ruiz que não teve tempo para nada. Quando ia ser trespassado pelos cornos aguçados do animal, o Pedro saltara e intrepusera-se entre ele e o Ruiz. Foi trespassado e a ponta do corno ainda atingiu o Ruiz no peito, que ficou ferido mas não morreu. O Pedro sim, esse morreu para salvar o seu querido patrão.
Então percebi o imenso respeito e carinho que o Ruiz sentia pelos africanos.
Continuámos na perseguição ao leão e ao fim de vinte e três dias de safari o nosso pisteiro levou-nos até uma pequena planície com ervas altas e na qual deparámos com um leão enorme a poucos metros, deitado o dormir. O Ruiz apontou com o dedo e o Senhor George Bates apontou com a espingarda. Deu um tiro e o leão deu um salto a grande altura e quando vinha a descer em direcção ao solo já as patas se moviam em forma de corrida de tal forma que mal tocou no chão desapareceu. O Ruiz virou-se para o George Bates furioso e perguntou-lhe: - O que foi isso?
Parecia incrível que àquela distância tivesse falhado um tiro tão ansiosamente esperado e desejado. Mas o George Bates abanava a cabeça e dizia: - Não... não...
Ele não falhara o tiro, não tinha era visto o leão mesmo ali ao pé. Vira outro que estava também a dormir, mas mais longe e... nesse ele acertara.
Assim acabou o safari e o Senhor George Bates levou todo o filme que eu fizera porque, se não lhe dessem o filme que ele me pagara, não pagaria o safari.
Soube mais tarde que esse mesmo filme foi exibido numa estação de televisão de Chicago pelo qual pagara bom dinheiro ao Senhor George Bates e no qual nem sequer figurava o meu nome.

Nos cerca de vinte anos que vivi em Moçambique assisti ao crescimento da cidade de Lourenço Marques com a construção de duas avenidas paralelas ladeadas com prédios de vinte andares e que tinha cinco quilómetros de extensão (cinco vezes maiores que a Avenida da Liberdade em Lisboa) e que íam desde a Polana até ao Alto Maé, no limite para a saída da cidade.
A população da cidade na sua maioria era de portugueses e assimilados, como alguns lhes chamavam, isto é africanos que tinham assimilado a cultura e língua portuguesa e exerciam um sem número de actividades, como condutores dos transportes públicos, nos serviços de limpeza da Câmara Municipal de Lourenço Marques, nos Correios e sei lá que mais. O sentimento geral desta população era que Moçambique precisava de ser independente ou pelo menos autónoma. Queríamos fazer uma nova Nação melhor que o Brasil , mas eu percebia muito bem que isto não pasava de um sonho, porque éramos poucos para tão grande tarefa e não nos deixavam ser mais porque isso ia contra os interesses das grandes potências que perfilhavam a tese de que a África devia ser mantida com os seus nativos e sem permitir que acontecesse o mesmo que sucedera na Europa e na América em que a interpenetração de outras culturas dera origem a Países desenvolvidos, prósperos e que aproveitaram ao máximo os seus recursos naturais próprios. Se isso acontecesse em África, as tais grandes potências, com os Estados Unidos à cabeça, perderiam as matérias primas vitais para as suas indústrias, porque perto de oitenta por cento dessas matérias primas essenciais lhes chegavam de África.
A propósito desta reflexão recordo um diálogo que um dia tive com o meu amigo Rocha Ribeiro em que eu lhe dizia: - Não percebo. Nós em Moçambique somos o terceiro maior produtor de algodão do mundo, só depois dos Estados Unidos e da Índia e mandamos todo este algodão para a Europa para depois irmos comprar as camisolas aos holandeses.
O Rocha Ribeiro riu, mas passada algum tempo fui contratado para filmar uma nova empresa que entrava em funcionamento: a TEXLOM.
Fui e deparei com um barracão enorme, quasiedo tamanho de um campo de futebol, repleto de teares alinhados, que teciam pano de algodão. Para entrar no barracão tive de pôr uns auscultadores como os que usavam todo o pessoal porque o ruído dos teares era ensurdecedor.
Fiquei maravilhado e quando encontrei o Rocha Ribeiro disse-lhe: - Caramba! Já não precisamos de ir comprar as camisolas aos holandeses...
O Rocha Ribeiro fez uma cara muito séria e respondeu: - Ferreira...Você não sabe o que isso quer dizer?
E eu respondi: - Quer dizer que já estamos um pouco mais independentes.
E ele retorquiu: - Não! Quer dizer que não nos vão deixar ficar por muito mais tempo nesta terra.
Pouco tempo depois deu-se o chamado Vinte e Cinco de Abril.

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