Durante várias anos, desde o tempo da minha sociedade com o Manuel Figueiredo que tinha um guarda-livros que escriturava a nossa contabilidade e todos os anos eu pagava em média cerca de trezentos contos de impostos ao Estado. Mas um dia encontrei o meu antigo sócio e ele mostrou um conhecimento sobre as contas da Quinecor que me desagradou. Em conclusão o meu contabilista passava informações ao Manuel Figueiredo sobre as nossas contas. Assim resolvi mudar de guarda-livros. Passei a contabilidade toda para um novo encarregado e durante perto de três anos nunca mais paguei impostos ao Estado. A minha mulher que se ocupava das questões burocráticas muitas vezes lhe perguntou: - Mas então nós não pagamos impostos? Ao que ele respondia: - Mas se a senhora não deve, quer pagar?
Ao fim de três anos rebentou a bomba. Ao que parece o nosso contabilista tinha um amigo nas Finanças que limpava os registos de contribuintes que assim saíam do sistema e ficavam isentos.
Quando as relações com o amigo foram descobertas, as Finanças apareceram com a exigência do pagamento de uma dívida estimada em dez mil contos, ou então a penhora de todos os bens da Quinecor. O novo guarda-livros não tinha escriturado uma única linha nos nossos livros de contabilidade. Fui forçado a suspender a actividade da Quinecor e foram penhoradas umas quantas coisas que ainda tínhamos.
O pior disto tudo foi que um dia estava eu muito bem a fazer uns desenhos sentado no meu estirador quando oiço um ruído forte no corredor. Saio para fora e encontro a minha mulher que estava no andar de cima no escritório e tinha rebolado pela escada abaixo, estendida no chão inconsciente. Levantei-a e chamei uma ambulância e foi para o hospital onde determinaram que tinha tido um acidente vascular cerebral. Andámos pelos médicos mais de quinze dias quando um neurocirurgião do hospital diagnosticou uma doença incurável, de origem genética e da qual nunca tinha ouvido falar: a Ataxia.
É uma doença que consiste na morte sucessiva dos neurónios do cerebelo o que resulta numa progressiva dificuldade em encontrar o equilíbrio e mais tarde em conseguir falar.
A minha mulher fora a minha dedicada companheira em mais de cinquenta anos de vida. Tínhamos cinco filhos, três rapazes e duas raparigas de que ela sempre cuidou carinhosamente e eu já era avô de nove netas.
Durante três anos cuidei dela, que já não podia andar e que por estar deitada permanentemente criara chagas nas costas que tinham de ser tratadas. Enfermeiras vinham a nossa casa regularmente para tratar disso.
Eu dava-lhe de comer, ajudava-a mudar de posição e fazia-lhe companhia. Um dia encontrei-a a chorar e perguntei-lhe porquê. Com imensa dificuldade respondeu-me: - Porque te quero ajudar e não posso...
Quando recordo isso ainda me vêem as lágrimas aos olhos.
Certa vez fui à Internet procurar informações sobre a doença da minha mulher e descobri que no Brasil um médico tinha conseguido curar a doença com um produto designado COQ 10.
Fui falar nisso ao médico que ficou furioso por eu ter ido à Internet e que quase por favor receitou o COQ 10 que passei a dar à minha mulher. Depois de muita insistência o médico de família acabou por me dizer que se o COOQ 10 tivesse sido dado logo de princípio talvez tivéssemos tido a oportunidade de a salvar, mas que agora já era tarde.
Assim um dia eu estava no quarto e tinha acabado de lhe dar o almoço quando ela me pediu para a sentar. Contra o habitual até falou com uma certa clareza e eu fiquei todo animado. Depois pediu-me também claramente: - Chega-me para trás.
Neste momento tocaram à campainha e fui abrir a porta. Eram as enfermeiras que vinham fazer o tratamento das escáreas nas costas. Fui à cozinha pôr os utensílios do almoço e quando vinha pelo corredor em direcção ao quarto, as enfermeiras vinham a sair e disseram-me: - Está morta!
Não sei descrever o que senti. Abracei a minha mulher a chorar e as enfermeiras só me diziam: -Não faça isso.
Tudo o que se passou a seguir, está envolto numa neblina que não sei explicar. Deu-se o funeral e eu a única coisa que sentia era uma poderosa vontade de morrer. A vida para mim perdera o sentido. Mas faltava-me a coragem para tomar uma decisão e a minha inteligência dizia-me que era minha missão seguir em frente até ao fim. Entrei num estado de depressão em que nada me interessava.
A minha filha mais nova, que vivia agora em Macau onde era funcionária pública, mandou-me uma passagem de avião para Macau e convidou-me a passar uns tempos com ela.
E foi o que aconteceu.
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