As Minhas Memórias (41)

Depois da chamada Independência, começaram a acontecer coisas. Lourenço Maarques passou a chamar-se Maputo. A Joana Simião que tinha acreditado na democracia, foi enviada para um chamado Campo de Reeducação, nunca mais de lá saiu e nunca mais se ouviu falar dela. O Almeida Santos foi-se embora para Portugal e começaram a aparecer os chamados cooperantes e as nacionalizações. A principal credencial naquela altura, para se ir para Moçambique como cooperante, era ter sido perseguido pela PIDE. De vez em quando íam chegando notícias de Portugal mas para quem agora ali vivia, pouco interessavam.

Entre esses chamados cooperantes acontece que conheci alguns e dos que conheci aquele que estava mais próximo porque quase todos os dias nos encontrávamos no café para umas longas conversas era o Américo, um jovem que andava numa cadeira de rodas porque estava paralisado da cintura para baixo. O Américo mostrava-se muito interessado nas minhas ideias sobre o Cinema e eu explicava-lhe que uma Nação nova, com uma forma cultural própria, independente e que tem várias formas de expressão cultural como a Música, a Literatura, a Pintura, a Dança, também deveria ter o Cinema como forma de expressão cultural. E, para isso, era fundamental criar uma escola, um centro de produção, um estúdio tecnicamente equipado e posto à disposição de uma produção moçambicana. Porque, como eu dizia, não podia existir cinema moçambicano sem moçambicanos que fizessem cinema.
O que eu não sabia, e vim a descobrir depois, era que o Senhor Américo tinha acesso directo ao Ministro da Informação Jorge Rebelo e levava-lhe estas reflexões como sendo suas até que um dia ele me pergunta: - Ouça lá. Acha que a antiga Casa das Beiras (uma casa regional de dois andares com um bom terreno anexo e mesmo ao lado de um cinema - O Nacional), seriviria para se montar esse tal Instituto de Cinema de que você tanto fala ?
Respondi-lhe que certamente que sim, dado que pudéssemos dispôr da colaboração de um arquitecto e de um empreiteiro para alterar a estrutura do edifício e adaptá-lo às suas novas funções. Nesta obra eu via acima de tudo a possibilidade de salvar e dar utilidade aos diversos equipamentos de cinema que havíamos conseguido adquirir ao longo dos tempos e que agora estavam acumulados inutilmente: As máquinas de revelar da Filmlab, do Melo Pereira, as minhas, as do Courinha Ramos...
Fui então apresentado ao arquitecto Forjaz, um cooperante indigitado pela Unesco e que se revelou um excelente colaborador. Na entrada criou um "hall" de recepção, rasgado até ao tecto que substituiu por placas de vidro que deixavam entrar a luz. Deste espaço amplo partiam corredores para as diversas secções: Salas de montagem, laboratório de análises, salas de revelação, sala de projecção (um pequeno anfiteatro para cinquenta lugares), cabine de projecção, estúdio de gravação de som, escritórios de produção, de distribuição, armazéns, arquivos, etc.
No primeiro andar ficaram os escritórios da direcção, as salas de reunião, a contabilidade, a
secretaria e algumas salas de aula.
Este foi o grande projecto do Instituto Nacional de Cinema de Moçambique a que deitei mãos.
A certa altura, quando as infraetruturas estavam quase prontas, o Senhor Américo diz-me assim: - Ferreira!... Existe um grupo de antigos criados das casas regionais que estão desocupados e aquilo que lhe pergunto é se os aceita como colaboradores do Instituto para lhes dar emprego.
Eu respondi afirmativamente porque de qualquer forma eu teria de lhes dar formação para o desempenho das suas funções e assim um dia cheguei ao Instituto e estavam à minha espera cerca de duzentos africanos que eu teria como função ocupar.
Comecei por lhes dar uma ideia de qual era a nossa missão e objectivos e depois a pouco e pouco fui formando grupos aos quais atribui um lugar no conjunto das diversas secções.
Assim, seis foram escalados para a secção de revelação. Com esses seis procedemos ao desmantelamento total das máquinas de revelar de que dispúnhamos, uma para revelar filmes a cores que fôra da Filmlab, outra para revelar filmes a preto e branco, outra ainda para revelar som (fotosonoro) e assim por diante. Depois cada peça foi limpa ou pintada, remontada e assim refeita a máquina como se fosse nova. Eu só dirigia e mostrava como se fazia e durante a montagem ia explicando a função de cada peça da máquina que era adicionada. Quando chegámos ao fim cada um daqueles seis homens conhecia as suas máquinas como as suas mãos.
Passou-se o mesmo com todas as outras secções e aos poucos cada um daqueles trabalhadores foi ficando integrado no Instituto.
Não que não tenha tido alguns problemas ao longo do percurso. Entre eles havia alguns amigos da pinga e outros com a mão muito leve. Um dia montei uma unidade que consistia num armário baixo com rodas, com um altifalante, um amplificador e um gira-discos no tampo. Destinava-se a circular entre as diversas salas de montagem para que os montadores pudessem ouvir discos e seleccionar músicas de fundo para aquilo que estavam a montar.
No dia seguinte o aparelho tinha desaparecido
Fiz uma reunião com todos e expliquei o alcance e a finalidade do cinema na sociedade. Falei-lhes que eram agora cidadãos de um país independente que seria grande se os seus cidadãos fossem grandes, mas pequeno se fossem pequenos. Aquele que levou a máquina vai beneficiar dela. Mas é só um. No Instituto a máquina beneficiaria muitos, numa força de todos de que ele afinal também faria parte.
No dia seguinte a máquina de tocar discos estava de volta no Instituto.
Levámos dois anos a trabalhar para pôr o Instituto de pé e quando apareceram as primeira imagens, filmadas, reveladas, copiadas e projectadas integralmente feitas por pessoal do Instituto, no dia seguinte entra pela porta dentro acompanhado de uns quantos amigos, o Senhor Rui Guerra, conhecido realizador brasileiro, muito de esquerda e que me diz: - Sabe eu venho para fazer um filme sobre o massacre de Uyriamu aqui em Moçambique, ao que eu respondi: - Deve estar enganado. Eu não montei o Instituto para fazer massacres... Então fazia os meus, porque eu tamcbém sei fazer massacres. O Institutio foi montado como Escola e centro de produção para Moçambicanos fazerem cinema.
O Senhor Rui Guerra saiu disparado e eu previ que ia ter chatices.

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